sábado, 28 de fevereiro de 2009

Calor


“Preciso falar com você. Mas tem que ser pessoalmente”, disparou. Uma voz meio chorosa, meio afoita. Ele não entendeu chongas, mas ficou preocupado. Há uns quatro meses que não se falavam.

- To saindo pra almoçar, pode ser agora?
- Uhum. Quer que eu te pegue aí?
- Não. Me encontra naquele restaurante. Onde fomos na primeira vez.

A primeira vez. Engraçado pensar nisso. A primeira vem em que se viram não foi recheada de romantismos e frases de amor. Nada de ternura e floreios. Foi uma febre intensa, um desejo ardente e filho da puta, que só deu trégua depois da terceira vez que foderam naquela tarde. Ela, exausta, suada, ofegante, só teve forças pra conferir as doze ligações em seu celular. Todas do seu marido.

Ele já sabia que ela era casada, desde o começo. Conheceram-se acidentalmente pela internet, quando em um site de busca, ela achou o e-mail dele por engano. Muitas mensagens trocadas depois, resolveram se encontrar pra almoçar. Chegaram rápido. Apesar de não ser um encontro tão às cegas, a surpresa ficou claramente exposta naquele breve instante em que o descompasso do coração e o arrepio na espinha se converteram em dois grandes sorrisos de felicidade. Os olhos de uma cor diferente dela. A carinha de garoto pidão dele. Todos os detalhes esmiuçados foram os assuntos que renderam naquela refeição.

Maldito sistema capitalista, que impede que os almoços se prolonguem por mais horas. Despediram-se e cada um foi para seu lado. Poucas horas depois, um telefonema já antecipava o segundo encontro daquele dia. Beijos tórridos e amassos dentro do carro dele não iam conter todo aquele desejo. Mais alguns minutos, e as roupas pelo chão eram refletidas nos inúmeros espelhos daquele quarto.

Descobriram-se apaixonados, mas pouco se encontravam. Era uma espécie de “amor” diferente. Ficavam dias, semanas, meses sem se falar. Quando dava vontade, algum deles ligava, marcavam e se viam. Encontros furtivos. Sexuais. Violentos. Trepavam, trocavam juras de amor inconsistentes, trepavam de novo, e ela ia correndo se vestir pra chegar em casa antes do marido. Nos últimos tempos, os encontros foram se tornando mais raros. A vida agitada dele não permitia parar pra sentir tanta falta assim de alguém. Era uma situação cômoda que o agradava. Talvez no fundo até pudesse amar aquela mulher, mas não tinha, e nem pretendia ter a menor responsabilidade para com ela.

Estacionou o carro em frente ao restaurante. Entrou. Sentiu-se aliviado pelo ar refrigerado forte que aplacava o calor daquele dia. Estava vazio. “Excelente”, pensou. Comeriam rápido, e poderiam conversar mais tranquilamente, cogitou, de forma prática. Ela estava sentada em uma mesa do canto. Já havia chegado há vinte minutos, o suficiente pra começar a sentir um pouco de frio ali dentro. Estava bonita. Mais bronzeada que da última vez que se viram. O cabelo liso e brilhante descendo pelos ombros, emoldurando o rosto alongado. Os olhos. Daquela cor que ele nunca conseguiu definir muito bem, mas que sempre o encantaram. Ela ensaiou levantar pra abraçá-lo. Ele se antecipou e a impediu, beijando demoradamente seu rosto e tocando em seu braço.

O garçom trouxe o cardápio pra ele. Ela já sabia o que queria, e ele resolveu pedir o mesmo. O rapaz anotou os pedidos e saiu, ao mesmo tempo que ela falou:

- To com um problemão. E preciso de sua ajuda.
- Claro. O que eu puder fazer. Estou às ordens.
- Acho que estou apaixonada. E por um homem casado.

A franqueza com que ela disse isso foi assustadora. Ele ficou alguns segundos em silêncio, fazendo esgares de quem não sabia realmente o que dizer. Teve uma sensação como se todo o sangue fugisse de seu corpo. De repente o calor já não o incomodava. Sentiu frio. Boca seca. Se tivesse que descrever a sensação, provavelmente não saberia.

Ela esperava uma resposta. Uma reação. Qualquer manifestação dele que indicasse que ela não era doida, ou que pelo menos não fosse uma puta pervertida. E talvez, bem lá no fundo, essas duas hipóteses tivessem passado pela cabeça dele.

- Não sei o que te dizer. Soltou, simplesmente.
- Como não? Não era essa a resposta que eu esperava.
- E queria que eu dissesse o que?
- Não sei. Você é meu amigo. Tem que me dar algum conselho.

Sentiu vontade de rir. De amante lascivo fora rebaixado a amigo confidente. O “Zé”, daquela música deprê do Léo Jaime. Demais pra uma tarde de calor, e pra um prato de penne com salmão de tamanho ridículo, que ele nem lembrava ter pedido. Respirou pausadamente. Buscou no mais profundo recôndito de sua alma uma centelha de nobreza e fidalguia, que fizesse tombar sua dignidade, permitindo dar um conselho que acalentasse a alma perturbada daquela sua pobre amiga. “Puta merda. Amiga é o caralho”. Pensou, já de pé, e terminando a segunda garfada no prato.

- Quer saber de uma coisa? Vai se foder.
- Heim? O que você disse?
- Vai se foder. Você, seu marido, o cara, a mulher chifruda dele e todo mundo.

Tirou umas notas amassadas do bolso e jogou na mesa. Saiu pisando duro. Um garçom deu “boa tarde”, tendo como resposta um grunhido. Colocou os óculos de sol, olhou pra cima. Suspirou. Entrou no carro, deu partida e pensou: “porra. Hoje ta quente pra cacete”.

sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

Kenny G




- Meu amor. Isso é realmente necessário?
- Ai. Deixa de ser bobo. É só pra dar um clima. Pra ficar mais gostoso.
- Ta, eu sei. Mas, essas velas. Sei lá. Não é meio perigoso? Pode pegar fogo.
- Você não ta com medo né, meu bem?
- Os acidentes acontecem exatamente assim. Sou novo demais pra morrer tostado.
- Olha, só. Não estrague a nossa noite romântica. Deixa de paranóia e vai colocar uma música pra gente ouvir.
- Ok.
- Tem um CD que eu já deixei ai em cima do som. Coloca ele.
- Não é esse aqui do Kenny G não, né?
- Esse mesmo, por quê?
- Hahahahah. Não fode. Você não vai me obrigar a ouvir isso. É muito chato.
- Heim?
- Esse "fuó...fuó" que ele faz no saxofone. É ruim que só a merda. Já viu "o acasalamento do suricate" no Discovery Channel? Igual.
- Larga de ser grosso. As músicas dele são lindas.
- Ah, para. Nem morto eu coloco isso. Essas velas fedorentas, mais essa música de corno. Tá arriscado eu nunca mais conseguir ter uma ereção depois disso. Kenny G brocha qualquer cidadão.
- Nossa. Como você é estúpido. Quer saber? Esquece. Vou pra casa. É muita grosseria pro meu gosto.
- Ah, não. Não vou deixar você ir embora assim. Vamos comer primeiro, depois você pode ir.

segunda-feira, 23 de fevereiro de 2009

Somos nozes


- Caramba, eu não falei. Você conseguiu de novo. Putz. Você é "o cara".
- Que nada, para com isso.
- Porra. É sério. Quando eu crescer quero ser que nem você.
- Ah, que exagero. Nem sou "o cara".
- Nada. Você é sim.
- Não, não. Sou apenas um esquilinho, tentando conseguir uma noz.
- ...
- Que foi? Que cara é essa?
- Como é? Esquilinho? Noz?
- É. Não sou "o cara". Sou um esquilinho tentando conseguir uma noz. Nunca ouviu essa expressão?
- Expressão? Isso não é expressão. Isso é viadagem.
- Heim?
- Caralho. Isso é boiolice da grossa. Porra. Esquilinho? Que merda é essa?
- Ah, vai se foder. Não tenho culpa que você nunca ouviu.
- Hahahahah. Esquilinho...esquilinho. Ui...ui. Pega aqui nas minhas nozes. Hehehehe.
- Filho da puta...
- Esquilinhoooooooo...

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

Hoje acordei com o rádio tocando INXS



Acho que nunca me conformei com a morte do Michael Hutchence. Claro. Não que eu tenha sido seu maior fã, ou algo que o valha. Mas é que toda vez que ouço “By my side”, sinto um aperto no peito, e aquele nó na garganta. Começo dos anos 90. Ótima época. Ainda estava no segundo grau, ainda tinha cabelo. Poucas preocupações, a não ser estudar um pouco, dormir à tarde e pensar que grupo muscular eu exercitaria na academia mais à noite.

Lembro-me também das minhas primeiras frustrações e decepções. Da minha primeira dor-de-cotovelo e, consequentemente, do primeiro porre com vinho barato. Até hoje fico pensando como apesar de tudo tive dignidade ao acertar a pontaria na privada, enquanto “ouvia” minha mãe brigando. Grandes amizades, novas idéias. As decisões do que fazer, de como conduzir o resto da minha vida estavam pra chegar, mas ainda podiam esperar um pouco.

Anos e músicas se passaram. E engraçado pensar numa trilha sonora que acompanha sua vida. Talvez nem todos os momentos mereçam ser eternizados numa canção, mas outras deveriam ganhar regravações, versões instrumentais com a Filarmônica de Berlim, a capella, com o coro dos meninos castrati de Viena e remixes do Timbaland.

O primeiro dia na faculdade. O choque da primeira agência. O primeiro salário gasto com alguma coisa inútil, mas divertida. Bem, no meu caso, meio tóxica e inflamável. A perda de pessoas queridas, ao mesmo tempo que outras chegavam. As descobertas boas e as ruins.

Mesmo aquela música do David Bowie que lembra um grande amor que foi embora. Ou The Corrs, que apesar de babinha e tema de novela, embalou ótimos momentos que nem a distância conseguiria impedir. Aquela viagem fantástica, mas demorada, cuja única música que prestava no CD era "Downtown", do Peaches. A explicação incompreensível de "Wonderful Tonight", que é brega de doer, mas consegue me fazer fechar os olhos e até suspirar quando ouço. Todas provocam a mesma sensação estranha: uma nostalgia que me deixa dúvidas, se gosto ou não de sentir.

Se pudesse incluir aleatoriamente algumas músicas, colocaria até umas de gosto bem duvidoso. Talvez Bee Gees. Furingo até a última geração dos Gibbs. Acho Dalto fantástico. Fatalmente teria alguma dele. Se bem que não sei onde se encaixaria.

- Ai, Henry. Ai. Vai. Continua assim.
- Humm. Delícia. Isso. Geme, geme.
- Aiiiiiiiii. Bate, Henry. Bate na minha bunda.
- Vou só aumentar o rádio, pra vizinhança não ouvir.
“Uhhhh. Cuida bem de mimmmmm. Então misture tudo. Dentro de nós”.
- Calma, Henry. Isso acontece. Vamos tentar de novo depois.

Acho que toda vida deveria ter uma trilha sonora. Pra ser memorável. Pra ser inesquecível. Quem não lembra da overdose de Uma Thurman, ao som do Urge Overkill? Stallone treinando nos acordes de Survivor. Diane Lane dublando “Nowhere fast”, enquanto o Tom Cody de Michael Paré vai embora da cidade. A “Marcha Imperial” do Darh Vader. Até aquela merda de “Unchained Melody”, que embalou o amor elameado do Patrick Swayze a da Demi Moore, é lembrado. Por que então, nós, pessoas comuns, não podemos ter um disquinho só nosso? Com uma capinha feita utilizando aquelas fotos de estúdio.

É. Acho que tenho algum CD do INXS aqui. “New sensation” é uma boa. Depois eu ouço “By my side”.

Ilustração do Luke Chueh, http://www.lukechueh.com/

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

Manilha


“Droga”, pensei. Um calor da porra, e eu de terno preto e gravata. Só mesmo aquele asno do Manilha pra me fazer vestir isso, em pleno sol louro do verão, e ao meio-dia. Maldita exigência.

Estávamos no intervalo da pelada de quinta à noite, quando ele fez o pedido:

- Henry, você é meu brother, né? Perguntou, com um sorriso.
- Ih. Lá vem. Quando começa com essa viadagem é porque lá vem coisa.
- É sério, porra. Preciso te pedir uma coisa.
- Não falei? Você é muito previsível. Nem disfarça. Mas vai lá. Pode pedir. Não é grana, né?
- No meu enterro, faz a galera ir de terno.

Disparou assim. Comecei a rir, meio que não entendendo a palhaçada. “Não fode”, falei no meio de uma gargalhada. Mas ele tinha um estranho aspecto de seriedade no tom, apesar da cara vermelha e suada pelo futebol. Como levar a sério? Era um pândego. Um fanfarrão. Seu maior defeito acabava sendo uma qualidade pra gente: mulherengo. Toda semana, uma diferente. Às vezes, mais de uma. Outras, mais de duas ou três. Não era tão bonito, mas tinha um certo charme debochado e despretensioso que chamava a atenção das mulheres. Desconsidere qualquer questão ética e moral que envolva a monogamia. Não o julgávamos.

Vivia se metendo em confusão com maridos chifrudos, mulheres psicóticas e casadoiras-maníaco-compulsivas. Chegava sempre no jogo com uma história nova. A ninfeta que gostava de apanhar. A coroa que só transava vestida. As gêmeas. A personal trainer. Tinha exatamente esse apelido por conta de uma dessas confusões. Certa vez, passou a noite inteira dentro de um buraco na rua, aberto pela prefeitura. Fugia do noivo policial de uma de suas garotas. Só de cueca e meia, ficou a madrugada chuvosa e fria dentro de uma manilha de esgoto.

Não deu uma semana e eu desligava o telefone, com as mãos na cabeça e um nó na garganta. Era o Lucas, falando que o Manilha tinha acabado de dar entrada no hospital. “Caralho, bicho. Que merda é essa?”, pensei. Exatamente uma semana depois da pelada, e do pedido dele. Teimava em imaginar o pior. Troquei de roupa e fui correndo pra lá. Éramos todos da mesma época. Crescemos juntos, todos bons amigos. Cada um do grupo que se casava, escolhia na sorte quem seriam os padrinhos, pra desespero da noiva, que sempre tinha que se preocupar com a despedida organizada por nós. Muita farra, noites mal dormidas, regadas a cerveja, tira-gosto e um papo que era basicamente o mesmo assunto, mas que rendia pela madrugada.

Estacionei o carro e vi o Marcello lá fora, fumando. Foi o primeiro a chegar, tinha os olhos inchados e tremia muito. Achava que ele só fumava quando bebia. Péssimo hábito. Fui em direção a ele, já com uma pressão sobre a cabeça e uma sensação ruim. “Coração, Henry. Novo daquele jeito”, ele disse, já me abraçando. Marcello terminou o cigarro, abanou a fumaça e pegou um chiclete. Estendeu a mão trêmula e me ofereceu.“É, quero. Valeu”.

Fui até a porta de entrada do hospital. O cheiro de éter entrou pelas minhas narinas como uma lança. Senti vertigem. Sempre odiei hospitais. Visitar amigos ou parentes doentes era um suplício. E agora estava ali, na frente dos familiares de Manilha, com aquela maldita sensação de “tá, e agora? O que eu falo?”.

Além do Marcello estavam lá o Guto, o Orlando, o Quinho e o Marco Antônio. Mas os celulares não paravam de tocar. Todos atrás de alguma informação. Dona Rosa, a mãe do Manilha, estava sentada num canto, amparada pelas outras filhas. Tinha uma expressão de quem já tinha chorado o máximo de tristeza e secado, de tanto pesar. Fui até ela. As meninas sorriram pra mim e me abraçaram. Desde o Natal não nos falávamos. Dona Rosa levantou os olhos, passou a mão pelo meu rosto e disse baixinho: vai lá dentro acordar seu irmãozinho, pra gente ir embora pra casa”. Botei o rosto entre suas mãos, e solucei como uma criança. Foi ao lado dela que recebi a notícia do médico.

Ouvi a buzina do carro enquanto terminava de dar a última olhada no espelho. Apertei um pouco mais a gravata e não pude deixar de pensar: “seu puto, você conseguiu convencer a gente a usar essa merda”. Peguei meus óculos escuros, tranquei a porta de casa e vi que Marcello estava fora do carro me esperando. Me deu um abraço, riu e perguntou:

- É impressão minha ou isso tá com cara de filme de comédia inglesa?
- Aham. Falta a Andie MacDowell de chapéu. E uma música do Elton John.
- Tem aqui no CD. “Empty garden”. Quer ouvir?
- Marcello. Você ta muito viadinho pro meu gosto.

O cemitério estava cheio. Achávamos que seria rápido, mas o espanto viria a seguir. O número de mulheres era surpreendente. Todas bem arrumadas tentando conter o choro. Chegavam uma a uma, altas, baixas, louras, morenas, ruivas. Era engraçado, porque conseguíamos reconhecer cada uma delas, graças às descrições que o Manilha nos dava. “A passista de Boa Vista, Henry”, sussurrou Marcello, apontando pra mulata gigante, e lembrando de uma das histórias mais memoráveis do safado.

Todas de preto. Algumas até com véu. Aquilo soava como mais um dos pedidos extravagantes daquele maluco. Solidárias na mesma dor, se cumprimentavam. Ele gostou de cada uma delas, e pelo visto, o sentimento era mútuo. Ali não parecia existir frustração, mágoa, rancor. A maioria contida, com exceção de uma mocinha de óculos, o rosto vermelho de tanto chorar. Ela chegou bem próxima à cova, e todos voltaram a atenção para a cena. Enxugou as lágrimas com um lenço de seda e num gesto brusco, arrancou do dedo direito uma aliança que foi arremessada com toda fúria em cima do caixão. O barulho seco provocou um “ohh” coletivo. Dona Rosa virou o rosto em minha direção, e numa expressão solícita esperava alguma espécie de explicação. Fiz minha melhor cara de origami. Também não sabia o que dizer, o puto estava noivo e não disse nada? Vai ver por isso que teve um pirepaque. Fui obrigado a disfarçar um sorriso. “Filho da mãe”, pensei.