quarta-feira, 26 de agosto de 2009

Entre livros


Lúcia considerava-se uma privilegiada. Cresceu assim, cercada de livros, de todos os tipos, gêneros e estilos. Desde criança fora estimulada por seus pais, que eram professores, a ler. Por conseqüência, escrevia muito também. Textos, contos, poesias. Tudo a inspirava. Tinha como grande aspiração publicar seu próprio livro.

Formou-se em Letras. Estava tentando um Mestrado em Estudos Literários. Mas, sempre ávida por palavras impressas, achava que ainda não estava satisfeita. Apesar de talentosa e bem sucedida, faltava-lhe algo. Como não sabia muito bem o que seria, conjecturou: já vivenciava tanto os livros e suas histórias. Queria fazer parte de uma delas. Constatou uma certa infelicidade em sua vida. Nunca teve uma grande experiência. Quando criança, quase não brincava na rua. Teve um ou dois namoradinhos. Não ia a festas. Só se sentia um pouco melhor ladeada pelas pilhas de livros de casa, ou da biblioteca.

Tinha um especial carinho pelos romances, mas sua verve dramática falava mais alto. Queria ser a personagem de uma grande tragédia, talvez. Algo com muita dor, intriga, ciúmes, ódio. Felipe, seu noivo, estranhava, mas também achava graça. Como uma pessoa pode gostar mais da tristeza que da felicidade? “Sou assim”, ela dizia. “A melancolia e a dor me motivam muito mais do que a alegria”. Ele, bom rapaz, apenas sorria. Pensava de outra forma. Sujeito simples, sem grandes ambições. Sempre tentava apreciar o lado bom das coisas.

Mais algum tempo de noivado, e finalmente se casaram. Felipe, que entre suas qualidades era extremamente esforçado e trabalhador, conseguiu uma promoção. Seu primeiro pensamento foi pra Lúcia, e como poderia tratá-la melhor com o aumento de seu salário. Sabia que trabalharia mais, teria um cargo de confiança. E ao mesmo tempo que temia a grande responsabilidade, contentava-se em imaginar os mimos com que presentearia sua esposa.

Estranhamente, ela não recebeu muito bem a notícia. Logo associou o aumento da carga horária, com as horas a mais que ele passaria fora de casa. As noites permeadas por serões intermináveis, que, na sua lógica distorcida, seriam apenas pretextos para as farras com os colegas do trabalho, ou traições com alguma vagabunda. Felipe riu, e tentou tranqüilizá-la. Nunca fora mesmo de safadezas, nem intentava isso. Era um eterno apaixonado por Lúcia, e se pensava em trabalhar mais, era ela que o impulsionava a isso. Não adiantou. Mais meia hora em que discutiram, resultou numa porta sendo batida com força, uns bons palavrões e o semblante desolado de Felipe, que teria que se instalar no sofá para passar a noite.

Pela manhã, mal se falaram. As costas dele doíam. A cara dela estava inchada. Ele ainda tentou entender o que estava acontecendo. Porque ela não podia simplesmente se alegrar com sua promoção? Qual a grande dificuldade em enxergar o lado bom das coisas? Tomou seu café em silêncio. Pegou sua pasta e ainda tentou beijá-la. Lúcia resmungou, e se esquivou. Felipe saiu, com suas costas arqueadas, não apenas por causa do sofá, mas pelo desânimo.

E os dias seguiram assim. Ele, cada vez mais triste pela indiferença dela. E ela, cada vez mais obcecada em descobrir alguma coisa. Era só Felipe sair de casa, que começava o ritual. Vasculhava gavetas, remexia em bolsos, cheirava camisas. Sempre em busca de alguma pista ou evidência. E nem a noite, quando ele chegava, isso tinha fim. O banho era hora de fuçar seu celular, e abrir sua carteira, em busca de bilhetes ou mensagens que provassem uma traição. Sabia que nos livros era assim. Deveria ser também na vida real.

A grande ironia é que no fundo, Lúcia sabia que Felipe era mesmo incapaz de lhe trair. Mas seu desejo em viver uma história dramática era tão intenso, que não se dava conta, ou não se importava com a amargura de seu marido. Nunca parou pra perceber a reforma que ele havia feito na casa. Jamais agradeceu o sem número de flores e chocolates que ele lhe trazia quase todos os dias. Os prospectos de agências de turismo, com a intenção de uma viagem a dois. Já não o beijava. Nem sequer o abraçava. E nunca encontrava qualquer sinal de sua traição. E de certa forma, ao invés de tranqüilizar-se, ela se enraivecia. Sentia vontade até de chamá-lo de frouxo, covarde. De fazer algo que o estimulasse a traí-la de verdade.

E assim o fez certa noite. Esperou que chegasse do trabalho, e, sem mesmo deixar que colocasse sua pasta no chão, já o foi bombardeando com insultos e injúrias que o deixaram zonzo. O humilhou de tal forma que nem a maior das megeras jamais o teria feito. Ao passo que o sangue dela fervia, o dele descia até os pés, deixando-o branco, lívido, gelado. E enquanto os impropérios de Lúcia continuavam, algo começava a acontecer com ele. Esperou pacientemente ela terminar, e quando finalmente Lúcia caiu exausta no sofá, ele se virou e subiu as escadas.

O barulho da porta se fechando foi precedido de um longo intervalo de silêncio. Lúcia esperava que alguma coisa acontecesse depois disso. Quem sabe ele não sairia arrumado, de banho tomado, pronto para ir a algum puteiro? Voltaria para casa fedendo a perfume enjoativo e ordinário, tropeçando de tão embriagado. Ela reclamaria, eles brigariam. Ofensas, tapas e todos os tipos de agressões poderiam acontecer. Quem sabe Felipe não tivesse até uma arma e a ameaçasse? Esses pensamentos a excitavam, e ela chegou a estremecer. Sorriu.

Decidiu ver o que ele estava fazendo. Em silêncio foi subindo degrau por degrau, mas parecia tudo quieto demais. Será que o encontraria enforcado? Ou talvez com os pulsos cortados, com uma expressão de dor, vendo o sangue minar de seu braço e manchar o chão. Estava mais preocupada com o contexto narrativo, do que com a integridade física de seu marido. Mas nem tinha tempo para pensar em sua própria canalhice. Era como em seus livros: o desfecho estava por vir. Seu coração disparava. A boca seca. Nunca tinha experimentado aquela sensação.

Decepcionou-se profundamente ao abrir a porta, e se deparar com um Felipe deitado, em sono profundo. O ronco vigoroso denunciava que permanecia com vida. Tamanha frustração fez Lúcia cair de joelhos. Nem o estrondo de seu corpo no chão foi capaz de acordá-lo. Muito menos o choro compulsivo de raiva, ao ver seu marido ali, com o semblante tranqüilo, como se sua placidez fosse uma zombaria. Aquilo a encheu de uma cólera gigantesca.

Levantou-se e enxugou os olhos. Saiu do quarto e desceu as escadas calmamente. Mas alguma coisa em seu olhar ainda parecia transtornado. Passou pela sala, e viu seu rosto refletido em uma janela. Desviou o olhar, como se tivesse enxergado algo assustador. Foi até a cozinha, pegou uma panela, encheu de água e a colocou para ferver. Ainda naquela noite teria sua grande história trágica.

segunda-feira, 17 de agosto de 2009

Pudim


É. Lá estava eu dentro do carro há meia hora. Tentando criar coragem pra entrar na casa da Andressa. Normalmente já era um suplício fazer isso. Claro. Confesso que simpatia e cordialidade nunca foram muito meu forte. Sou um anti-social por natureza. Tenho um pouco de “gastura” dessas coisas de ficar sorrindo, inventando assunto, fingindo interesse quando falam de futebol ou quando elogiam o chato do Marcelo Camelo e seu novo cd. Mas o grande problema é que era difícil, por “default” encarar o povo da casa dela.

O pai, que alterna momentos de alegria e euforia ao me ver, solta comentários do tipo: “aquele chato que não bebe ta aqui? Ele não tem casa, não?”. A mãe vive trocando meu nome (é, pelo dos outros namorados que a filha já teve. Gostaria de conhecer o tal Eduardo. Ele parece mesmo ser brilhante). As irmãs, Carla e Milena. Hummm. Deixarei para um capítulo a parte. Hoje meu lado rodrigueano de tara por cunhadas foi suprimido pelo clima natalino-trash-apocaliptico que já se anunciava.

Absorto em meu sofrimento, nem percebi o adocicado cheiro que tomava o ar dentro do carro. Maravilha. Alguns buracos e lombadas tinham transformado o banco do carona numa travessa para o pudim que minha mãe carinhosamente fez, para que eu não chegasse de “mãos abanando” na ceia natalina. Tudo bem. Era só colocar de volta no pirex. Ninguém perceberia que ficou meio desmontado, um pouco torto pra esquerda. Mas o problema nem era esse. “Merda”, pensei. Minha irmã tinha pego o carro pra levar o poodle da minha sobrinha pra tosar. Pêlos de cachorro em suspensão no ar. Isso explica os espirros que dei no trajeto todo. Preciso lembrar: não comer o pudim.

Bem, vamos lá. Enfrentar meus algozes e obter a purificação espiritual. Aperto a campainha. O “já vai” em voz levemente embriagada já me remete ao que terei de enfrentar até o momento em que o peru Sadia será cortado, e as bocas se calarão pra melhor mastigá-lo. O pai de Andressa nem sequer disfarça o quanto está contrariado/chateado/decepcionado e/ou outras sensações que tenham passado em sua mente ao me ver. Decerto (adoro esse termo) esperava o entregador da distribuidora de bebidas com mais uma grade de cerveja. Com um grunhido e um gesto me mandou entrar. Ainda tive a decência de dizer, entredentes, um “feliz Natal”, mas fiquei no vácuo. “Comerás meu pudim de pêlos, maldito”, pensei, numa espécie de vingança besta antecipada.

Fui até a cozinha cumprimentar as outras pessoas. Mãe, tios, tias, avós, cunhados, sobrinhos. Aff. Era muita gente. Não sobraria lugar pra mim à mesa. Andressa estava terminando de enfeitar uma travessa de arroz. Estava bonita (ela, não a travessa. Odeio arroz coloridinho). Estava com um lindo vestidinho estampado e as unhas num vermelho vivo que ela pouco usava, mesmo quando eu dizia que achava bonito. Deixei o pudim torto na mesa, lhe dei um beijo e cumprimentei sua mãe. Ela me ofereceu rabanadas. Fiz uma cara meio estranha. Eu odeio rabanada, e acho que ela percebeu. “Ah, é. Quem gostava era o Murilo”. Gentilmente recusei com um sorriso nos lábios e um desejo de “enfia o pão, os ovos, o açúcar e a canela no cu do Murilo”. Fui até a varanda, falar com o resto da família. Começa então minha descida ao inferno.

A visão é aterradora. As crianças gritando, brigando, chorando. As mães reclamando da bagunça. Os cunhados bebendo e enchendo meu saco, querendo que eu pegue um copo e beba com eles. A parte boa é que pelo menos não tinha (ainda) a Simone tocando o “então é Natal, e o que você fez?”. Mas, como diria um conhecido que “miséria pouca é bobagem”, o que seria um peido, pra que já cagado estava?

Para minha sorte (?), a mãe de Andressa disse que logo a ceia seria servida. Mas até lá, ainda me aguardava muita dor e sofrimento. E eu já sabia o que isso significaria: os presentes. Primeiro, o amigo X. Depois, a vinda de Papai Noel. Todo ano a mesma coisa. Fizemos o sorteio dos nomes, e o amigo X transcorreu sem maiores complicações. Tirei uma das crianças, dei um presente que ela não entendeu o que era e jogou num canto. Acho que era uma espécie de joguinho de montar. Ganhei um par de meias de um dos maridos da irmã de Andressa. Acho que ele ficou mais surpreso do que eu ao ver o que era o presente.

Bem, todos deram e receberam os mimos. Isso era o sinal de que a vinda de Papai Noel já era um fato. Olhei em volta, e tentei reparar quem estava faltando. Lógico, o eleito para vestir aquela surrada e embolorada roupa do bom velhinho. Esse ano, graças a protuberante barriga, conquistada pelo chopp e miúdos de frango do boteco do Pelado, o velho Noel seria magistralmente interpretado por Lalico, o marido de Carla. Acho que ia ser divertido.

Enquanto conversava e passava a mão nas coxas de Andressa, que estava confortavelmente sentada em meu colo, começo a ouvir um “ho, ho, ho” meio descadenciado, ofegante e com um tom embriagado. Lalico já começava a sua performance, para desespero das crianças. Os mais novos choravam, se escondiam e se desesperavam. As mais velhas faziam um ar de ceticismo e esgares de “eu sei que Papai Noel é apenas uma lenda criada pelo imperialismo norte-americano que tem como pretensão impulsionar o consumismo desenfreado”. Ok. Tenho que concordar. A visão era dantesca, desesperadora, caótica. Parecia aqueles papais noéis de filme de sessão da tarde. Bêbado, barba torta, cambaleante. Tragicômico. Um Papai Noel com cofrinho aparecendo, de tênis e um puta bafo de cana. Caralho. Definitivamente o Natal me entristecia.

Acabada a pantomima, papéis de embrulho pelo chão, crianças martelando pianinhos de brinquedo e soprando cornetinhas irritantes, fomos comer. “Ótimo”, imaginei. “Como um pouco, faço uma hora, dou uns amassos na Dê e vazo pra casa”. Só umas lascas de peru me separam da liberdade. Uma oração é puxada pelas avós. Tento fechar os olhos, mas é engraçado ver as expressões de desespero nas caras famintas. O “amém” vem em uníssono, como um suspiro de alívio. Barulho de talheres e louça. Um pimpolho já começa quebrando um copo e começa a chorar. Toma esporro, chora mais ainda. A mãe manda parar de chorar e a situação piora. O pai só ri. E eu sofro.

Ansioso, estendo meu prato. Peço que dona Yolanda coloque pouco, mas acho que ela me ignora totalmente. “Não. Você está muito magrinho. Precisa comer. O Rafael gostava de prato cheio”. Velha senil. Não sei se ela não gosta de mim ou se é apenas sem noção. Gostaria de perguntar se na época em que ela nasceu já era feito o teste do pezinho, mas não ia me aborrecer mais. Nota: eu sei que o Rafael gostava de comer. Dá pra reparar nos 160 kilos que ele ostenta hoje.

Termino de comer rapidamente, faço dois ou três elogios do tempero e fico ali, observando enquanto Andressa começa a servir as sobremesas. Não seguro uma risada quando Mozart, marido de Milena, diz que o pudim está uma delícia. Sei que até a hora de ir embora ainda sofreria como um cão, mas só aquela visão já me consolava. Quanta alergia, intoxicação e sabe-se lá mais o que aqueles restos de pêlo iam ocasionar. Foda-se. Cada um com seus problemas. E eu já tinha vários. Estendem um prato com o doce pra mim. Recuso. Prefiro apenas comer um bombom.