sexta-feira, 28 de maio de 2010

Intimidade


 

Procurava a cueca pelos cantos do quarto quando ela soltou essa:

- Semana que vem eu me caso - falou, deitada. Olhando pra cima e mexendo no piercing do umbigo.

Ele nem se abalou. Continou a procurar o resto da roupa. Achou perto da porta do banheiro. Inspecionou a peça, procurando alguma coisa que pudesse ser estranha ou pegajosa. Vestiu, foi ao banheiro e fechou a porta. Não era a primeira vez que se viam pelados. Já estiveram várias vezes ali. Talvez até mesmo naquele quarto. Mas por mais intimidade que tivessem, ele ainda se recusava a fazer xixi na frente de outra pessoa. Ela achava frescura, mas já nem ligava mais. Deu descarga, e antes de abrir a porta perguntou lá de dentro, num tom mais alto: ah vai, é?

Num muxoxo, respondeu que sim. Ele riu e sentou-se na cama pra desvirar a camisa. Achou um buraquinho nela. Que merda. Minha camiseta da sorte, pensou. Por ele, o assunto já teria morrido lá atrás, mas ela insistiu. Reclamou um pouco. Disse que não sabia se era bem isso que queria. Ainda se achava muito nova, e todo aquele blá blá blá típico de quem procura uma justificativa para não se amarrar. Adoraria continuar aprontando, sendo livre. Saindo a hora que quisesse e sem ter que inventar desculpas esfarrapadas por chegar em casa com marcas na bunda a arranhões nas costas. No fundo, admitiu que estava mais conformada do que feliz. Mas não queria aborrecê-lo mais com esse assunto. De qualquer forma, ia aproveitar, porque depois não poderia mais. Achou o comentário estranho. Largou o cinto e perguntou:

- Não poderia exatamente o quê? E por quê?

Numa expressão de ironia, como se aquela fosse a mais cretina das perguntas, respondeu: oras, depois que casar não pode mais. Ele, ainda confuso, tentou argumentar:

- Peraí. Vocês já vivem juntos. Tem até um filho de cinco anos. Que história é essa?

Ela, então, encerrou qualquer tentativa de réplica:

- Sim, mas agora vou jurar fidelidade.  E diante de um monte de gente.

Ficou meio sem ação. Um filme passou diante dele. Lembrou de todas as vezes em que estiveram juntos. Ela, sempre apressada. Quantas vezes fizeram sexo sem preliminares. Quantas outras ainda dentro do carro, ou mesmo em pé ali, na garagem do motel. Preferia sair com ele à tarde, logo depois de deixar o filho na escola. Ele também adorava tudo aquilo. Sempre preferiu as compromissadas. Noivas, casadas e por aí vai. Não pegavam no pé, não cobravam nada. Ela era perfeita para ele nesse quesito. E com o tempo foram até se tornando mais amigos. Incrivelmente, o tesão que sentiam um pelo outro, não diminuia, nem quando ela comentava sobre as cortinas novas, ou reclamava do preço do xarope infantil. Achava até graça na forma como ela compartihava isso com ele.

Olhou demoradamente pra ela que, de costas, dava pulinhos vestindo a calça. Só nessa hora percebeu que ela tinha engordado um pouco, mas continuava linda como sempre. Suspirou. Esperava realmente que ela não acreditasse muito nas próprias convicções. Ou que pelo menos abrisse uma exceção para ele, vez ou outra.

Sorriu pensando nisso. E voltou a procurar as meias.

quinta-feira, 6 de maio de 2010

Padaria


Esperava aflita. Sentada, batia os joelhos de nervoso. O esmalte Roxo-Mocinha da linha Impala Adriane Galisteu já tinha sido todo comido, tamanha a sua gastura. Nesse intervalo de meia hora em que ele havia ligado, já tomara mais de três cafés. Comeu um pão de queijo e olhava de soslaio pra um quindim. Quando finalmente tomou coragem pra pedir o doce, ele chegou. A cara não era das melhores, e antes até do bom dia já reclamou do calor.


Ela ignorou a rabugice, e deu-lhe um beijo estalado. Ele não deu importância. Aboletou-se na cadeira e pediu que ela também sentasse. Tenha modos, Martinha, ele disse, vendo que ela se sentava de qualquer jeito, mesmo de saia. Fez a festa da peãozada, que também tomava café por ali. Obedecendo, usou as mãos para tentar esconder a visão de sua calcinha amarelo vivo, que teimava em despontar por entre aquelas roliças coxas.


Na verdade, tanto fazia a calcinha aparecer ou não. Queria ouvir o que Augusto tinha a dizer. Seria finalmente o pedido? Desde o dia anterior, quando ele, com voz solene ligara dizendo ter algo de importante a falar, tinha calafrios só de imaginar que seria isso. Depois de sete anos, dez meses e vinte e três, quase vinte e quatro dias, a fortuna sorria pra ela. Iria se casar. Com véu, grinalda e flores de laranjeira.


Claro. Já não era mais virgem desde aquela noite chuvosa dentro do fusca de Augusto. Ele tinha sido sim o primeiro. Bem, primeiro, primeiro...teve o Serginho, o Lauro, o Pedroca. Mas foram só sarrinhos, mão no peitinho, dedinho maroto. Mas ali, enfiando, na real? Só o Augusto. 


Encerrou seus devaneios, e pediu que ele falasse logo. Brotoejas de excitação começavam a surgir entre as coxas. Só achava estranho o pedido ali, uma padaria? Mas claro. Augusto queria sondar o terreno. Nem faria o pedido oficial. Só queria ter certeza. Na certa, seria discreto, fingiria, só pra saber. Diria que um amigo está pensando em pedir a noiva em casamento, mas tem dúvidas, medo dela não aceitar. Claro que aceito, oras. 


Nem teve tempo de imaginar o churrasco de noivado. Ela, com seu vestido novo de viscolycra, ele, de bermuda cargo e mocassim de franjinha. Logo recebeu a pancada. Dura. Rápida. Seca. Acho que não dá mais. Quero terminar, disparou simplesmente.


Fora de uma frieza glacial. Cruel. Inclemente, como um guerreiro mongol. Ela ficou zonza. Sentiu esgares de azia. Ânsia de vomito. Aturdida, só teve tempo de pensar. Ainda bem que não pedi o quindim. Odeio vomitar doce. Sua pressão caiu. Apoiou a cabeça na mesa.


Já não o ouvia mais. Suas explicações do motivo ficaram ao vento. A menina nova que ele conhecera, a pouca idade, a falta de sintonia dos dois. Ela só pensava em parar de ver tudo rodando. E quando finalmente conseguiu, pediu uma água mineral. Bebeu o copo de um só gole. Respirou. Levantou os olhos. Puxou o ar. Olhou seriamente pra ele. Seus olhos grandes de personagem de mangá ficaram cerrados, tamanho o ódio.


Pensou em um milhão de impropérios, afrontas e injúrias pra dirigir a ele. Toda a dedicação, amor e zelo que lhe dedicara. Mas lhe faltavam forças. Só teve fôlego para constatar o óbvio.


- Seu grande filho de uma puta. Tanto lugar para me dar um pé na bunda, tinha que ser nessa padaria horrorosa?


Nesse momento, as xícaras pararam no ar. Um silêncio sepulcral só foi quebrado pelo ranger da cadeira de Martinha, que conseguiu se levantar. Girou nos calcanhares e saiu pisando duro. Foi ao balcão, pediu seis quindins pra viagem. Tirou umas notas amassadas da bolsa enquanto olhava para a atendente, pedindo cumplicidade. Voltou atrás. Guardou o dinheiro. Retornou à mesa, olhou mais uma vez para Augusto e lhe deu um retumbante e sonoro tapa. Um ui coletivo e abafado foi o que coroou o espetáculo. Antes de deixar a padaria, voltou ao balcão e disse com voz triunfante: ele paga.