quinta-feira, 9 de junho de 2011

Farsa


Aquilo era o que ela mais gostava. Ele a pegava pelas pernas, a virava de quatro e dava-lhe um tapa estalado na bunda. Olhava pra ele de rabo de olho, fazia a cara mais lasciva que conseguia puxar da memória e falava com um sorrisinho sacana “vai, me come.” Nem deu tempo. Na hora em que ele já preparava para meter, ela ouviu o celular. E o toque personalizado já denunciava quem seria. Soltaram um duplo “puta merda”. Ela mordeu os lábios, olhou pra ele e fez cara de cachorro quando cai da mudança. Num pulo, Camila foi pegar o telefone.

- Porra. Você vai atender?

- Ai, amor. É a Leticia. Sabe que ela não tá bem.

- Não o cacete. Eu quero que ela se foda. Aliás por falar em foda, aqui tá difícil dar uma, heim?

- Ah, para. Vou ver o que ela quer. É rapidinho.

Ele levantou e foi tomar um banho, porque sabia que não era nada rápido. E duas horas depois, enquanto ele ressonava, ela ainda estava ao telefone. Com a mão escorando a cabeça e disfarçando os bocejos já não falava nada diferente de um “aham” há pelo menos 40 minutos. Do outro lado Leticia só choramingava. Reclamava há dias do comportamento de Fábio. Distanciamento, agressividade, indiferença. De alguns dias para cá ele estava mudado. Achava tudo ruim. Alternava momentos de euforia com uma tristeza profunda e aparentemente sem motivo. Mas o que mais intrigava Camila não era ele e suas atitudes. Era a sua amiga.

Leticia sempre se mostrou forte, independente e decidida. De uma arrogância impar, adorava punhetar a própria imagem. Gabava-se de sua personalidade forte, e que segundo ela “assustava os homens”. Perita em se vangloriar, esnobava a todos com seu enciclopédico conhecimento, conquistado com pesquisas no Google. Seu emprego sempre foi o melhor. Ela sempre era a mais bonita da festa. Seus conselhos, os mais acatados. Suas sugestões, as mais certas. Parecia entender sempre de todos os assuntos. Tinha-se a impressão de que discorria sobre novas técnicas de reprodução assistida do Surucuá da Cauda Vermelha com mais propriedade que o maior dos biólogos, mesmo sendo advogada. Mas também era arquiteta, designer, engenheira, decoradora, sommelier, barista e, segundo ela mesma, fazia o melhor molho bechamel de todo o mundo. “Aprendi a fazer em nossa viagem a Paris”, contava, pela enésima vez. E olhava pra ele, fazia uns gracejos e falava num irritante tatibitati.

Era a maior especialista em orelhas de livros. Tornava-se perita nos clássicos da literatura, sem ter chegado nem à décima página. E fundamentava sua vidinha assim, ostentando uma aura de completa felicidade. Fábio não era muito diferente, também adorava valorizar o próprio passe. Era o casal perfeito e bem sucedido. E toda essa aparente perfeição chegava a ser chata. Mas fora isso, dava até pra se divertir com eles. No fundo, os dois eram relativamente bons amigos. Do seu jeito, mas eram.

E agora, estava ela ai, completamente zureta. Sempre se preocupou em ter suas coisas, sua vida. E no momento em que Fábio cogita até uma separação, sua aparente estabilidade desmorona. E com isso lá se vai o sossego de Camila, e por consequência, de seu namorado. Leticia já não tinha mais horários próprios pra inconveniência. Ligava quase o dia todo para contar alguma coisa, desabafar ou se lamentar. Havia adquirido uma personalidade piegas. Materializava seu sofrimento em forma de versinhos cafonas, ou de pensamento enviados por e-mail ou mensagem no celular. Chegou a confessar que preferia morrer a viver sem ele.

Batia na porta dos amigos nos horários mais impróprios. Parecia até de propósito. Era só Camila pensar em sair, que ela aparecia. Juliano, seu namorado, ficava puto. E ficava em casa, fazendo sala pra amiga sem noção. Ele alertava, para que não tomasse partido:

- Vai que eles se acertam. Ela ainda vai brigar com a gente, por chamá-lo de vagabundo – dizia.

- Mas ela é minha amiga. Preciso dar apoio.

Letícia chegou ao fundo do poço. Não se depilava mais, vivia com o cabelo desgrenhado e cheirava a meia suja. Tirou férias só pra poder curtir sua fossa em casa sossegada. Camila e Juliano alternavam visitas pra ver se estava tudo bem, mas depois que ele a encontrou deitada no sofá, de calcinha bege, com o sutiã de alças frouxas e com o braço levantado e mostrando os cabelos do sovaco disse que nunca mais iria. E isso se arrastou por mais alguns dias.

Na semana seguinte, Camila foi visitar a amiga. Deu de cara com a porta. Tocou a campainha de Leticia e ela não abriu. Preocupou-se. Ensaiou uma fungada no ar pra ver se não tinha cheiro de gás. Esmurrou a porta, chamou e nada. Ligava, mas o celular só dava fora de área, e lá dentro ninguém atendia. Quando já se preparava para chamar a polícia, pensando no pior, ouviu as risadas de sua amiga. E de Fábio. Do elevador saiam os dois, abraçados, com uma sacola de pão e o jornal. Tênis, bermudinha, camiseta. Tinham ido correr no parque e agora iam preparar o desjejum. Camila ficou atônita, mas já estava com tanta preguiça daquela situação toda, que se contentou em só achar bom. Sorriu, fingiu que estava tudo normal e nem sequer quis perguntar muita coisa. Apenas agradeceu o convite para o café e foi embora. Viu que novamente a paz reinava naquela casa de gente doida. Saiu dali o mais rápido possível.

Uma semana depois, ligou para Letícia. Queria saber como estavam as coisas entre ela e Fábio. Foi surpreendida com um seco e lacônico “estão ótimas”. E como ela não retribuía a pergunta, Camila se pronunciou. Disse estar com alguns probleminhas com Juliano. Preocupações, desconfianças. Surpreendeu-se:

- Hummm. Chato, né? – disse Letícia, sem muito interesse.

- É. Acho que estou precisando conversar um pouco. Vamos sair?

- Tá. Eu te ligo. Beijo. – e desligou, sem nem esperar muito.

E claro, Letícia não ligou.