quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

Manilha


“Droga”, pensei. Um calor da porra, e eu de terno preto e gravata. Só mesmo aquele asno do Manilha pra me fazer vestir isso, em pleno sol louro do verão, e ao meio-dia. Maldita exigência.

Estávamos no intervalo da pelada de quinta à noite, quando ele fez o pedido:

- Henry, você é meu brother, né? Perguntou, com um sorriso.
- Ih. Lá vem. Quando começa com essa viadagem é porque lá vem coisa.
- É sério, porra. Preciso te pedir uma coisa.
- Não falei? Você é muito previsível. Nem disfarça. Mas vai lá. Pode pedir. Não é grana, né?
- No meu enterro, faz a galera ir de terno.

Disparou assim. Comecei a rir, meio que não entendendo a palhaçada. “Não fode”, falei no meio de uma gargalhada. Mas ele tinha um estranho aspecto de seriedade no tom, apesar da cara vermelha e suada pelo futebol. Como levar a sério? Era um pândego. Um fanfarrão. Seu maior defeito acabava sendo uma qualidade pra gente: mulherengo. Toda semana, uma diferente. Às vezes, mais de uma. Outras, mais de duas ou três. Não era tão bonito, mas tinha um certo charme debochado e despretensioso que chamava a atenção das mulheres. Desconsidere qualquer questão ética e moral que envolva a monogamia. Não o julgávamos.

Vivia se metendo em confusão com maridos chifrudos, mulheres psicóticas e casadoiras-maníaco-compulsivas. Chegava sempre no jogo com uma história nova. A ninfeta que gostava de apanhar. A coroa que só transava vestida. As gêmeas. A personal trainer. Tinha exatamente esse apelido por conta de uma dessas confusões. Certa vez, passou a noite inteira dentro de um buraco na rua, aberto pela prefeitura. Fugia do noivo policial de uma de suas garotas. Só de cueca e meia, ficou a madrugada chuvosa e fria dentro de uma manilha de esgoto.

Não deu uma semana e eu desligava o telefone, com as mãos na cabeça e um nó na garganta. Era o Lucas, falando que o Manilha tinha acabado de dar entrada no hospital. “Caralho, bicho. Que merda é essa?”, pensei. Exatamente uma semana depois da pelada, e do pedido dele. Teimava em imaginar o pior. Troquei de roupa e fui correndo pra lá. Éramos todos da mesma época. Crescemos juntos, todos bons amigos. Cada um do grupo que se casava, escolhia na sorte quem seriam os padrinhos, pra desespero da noiva, que sempre tinha que se preocupar com a despedida organizada por nós. Muita farra, noites mal dormidas, regadas a cerveja, tira-gosto e um papo que era basicamente o mesmo assunto, mas que rendia pela madrugada.

Estacionei o carro e vi o Marcello lá fora, fumando. Foi o primeiro a chegar, tinha os olhos inchados e tremia muito. Achava que ele só fumava quando bebia. Péssimo hábito. Fui em direção a ele, já com uma pressão sobre a cabeça e uma sensação ruim. “Coração, Henry. Novo daquele jeito”, ele disse, já me abraçando. Marcello terminou o cigarro, abanou a fumaça e pegou um chiclete. Estendeu a mão trêmula e me ofereceu.“É, quero. Valeu”.

Fui até a porta de entrada do hospital. O cheiro de éter entrou pelas minhas narinas como uma lança. Senti vertigem. Sempre odiei hospitais. Visitar amigos ou parentes doentes era um suplício. E agora estava ali, na frente dos familiares de Manilha, com aquela maldita sensação de “tá, e agora? O que eu falo?”.

Além do Marcello estavam lá o Guto, o Orlando, o Quinho e o Marco Antônio. Mas os celulares não paravam de tocar. Todos atrás de alguma informação. Dona Rosa, a mãe do Manilha, estava sentada num canto, amparada pelas outras filhas. Tinha uma expressão de quem já tinha chorado o máximo de tristeza e secado, de tanto pesar. Fui até ela. As meninas sorriram pra mim e me abraçaram. Desde o Natal não nos falávamos. Dona Rosa levantou os olhos, passou a mão pelo meu rosto e disse baixinho: vai lá dentro acordar seu irmãozinho, pra gente ir embora pra casa”. Botei o rosto entre suas mãos, e solucei como uma criança. Foi ao lado dela que recebi a notícia do médico.

Ouvi a buzina do carro enquanto terminava de dar a última olhada no espelho. Apertei um pouco mais a gravata e não pude deixar de pensar: “seu puto, você conseguiu convencer a gente a usar essa merda”. Peguei meus óculos escuros, tranquei a porta de casa e vi que Marcello estava fora do carro me esperando. Me deu um abraço, riu e perguntou:

- É impressão minha ou isso tá com cara de filme de comédia inglesa?
- Aham. Falta a Andie MacDowell de chapéu. E uma música do Elton John.
- Tem aqui no CD. “Empty garden”. Quer ouvir?
- Marcello. Você ta muito viadinho pro meu gosto.

O cemitério estava cheio. Achávamos que seria rápido, mas o espanto viria a seguir. O número de mulheres era surpreendente. Todas bem arrumadas tentando conter o choro. Chegavam uma a uma, altas, baixas, louras, morenas, ruivas. Era engraçado, porque conseguíamos reconhecer cada uma delas, graças às descrições que o Manilha nos dava. “A passista de Boa Vista, Henry”, sussurrou Marcello, apontando pra mulata gigante, e lembrando de uma das histórias mais memoráveis do safado.

Todas de preto. Algumas até com véu. Aquilo soava como mais um dos pedidos extravagantes daquele maluco. Solidárias na mesma dor, se cumprimentavam. Ele gostou de cada uma delas, e pelo visto, o sentimento era mútuo. Ali não parecia existir frustração, mágoa, rancor. A maioria contida, com exceção de uma mocinha de óculos, o rosto vermelho de tanto chorar. Ela chegou bem próxima à cova, e todos voltaram a atenção para a cena. Enxugou as lágrimas com um lenço de seda e num gesto brusco, arrancou do dedo direito uma aliança que foi arremessada com toda fúria em cima do caixão. O barulho seco provocou um “ohh” coletivo. Dona Rosa virou o rosto em minha direção, e numa expressão solícita esperava alguma espécie de explicação. Fiz minha melhor cara de origami. Também não sabia o que dizer, o puto estava noivo e não disse nada? Vai ver por isso que teve um pirepaque. Fui obrigado a disfarçar um sorriso. “Filho da mãe”, pensei.

5 comentários:

  1. Geralmente no velório a gente chora, mas se tratando do mundo de Henry a gente ri e até se familiariza com alguns personagens da história. ;) beijo...

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  2. Apesar de se tratar da morte do seu amigo.
    Ri sem querer. Muito bem escrito teu post.
    Esse Manilha era um figura.

    Beijo

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  3. é, textinho muito bacana. danado esse henry :)

    beijo, chuchu

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  4. Muito interessantes texto e blog, parabéns!
    Penso que o mais importante ao morrer seja ter histórias, mesmo que sejam contadas pelos outros...

    Abraço.

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  5. hahah.. adorei sua descrição. Tirando o creme de milho, acho que sou mto parecida! rs

    Legal seu blog, gostei!

    Beijos!

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