quinta-feira, 9 de junho de 2011

Farsa


Aquilo era o que ela mais gostava. Ele a pegava pelas pernas, a virava de quatro e dava-lhe um tapa estalado na bunda. Olhava pra ele de rabo de olho, fazia a cara mais lasciva que conseguia puxar da memória e falava com um sorrisinho sacana “vai, me come.” Nem deu tempo. Na hora em que ele já preparava para meter, ela ouviu o celular. E o toque personalizado já denunciava quem seria. Soltaram um duplo “puta merda”. Ela mordeu os lábios, olhou pra ele e fez cara de cachorro quando cai da mudança. Num pulo, Camila foi pegar o telefone.

- Porra. Você vai atender?

- Ai, amor. É a Leticia. Sabe que ela não tá bem.

- Não o cacete. Eu quero que ela se foda. Aliás por falar em foda, aqui tá difícil dar uma, heim?

- Ah, para. Vou ver o que ela quer. É rapidinho.

Ele levantou e foi tomar um banho, porque sabia que não era nada rápido. E duas horas depois, enquanto ele ressonava, ela ainda estava ao telefone. Com a mão escorando a cabeça e disfarçando os bocejos já não falava nada diferente de um “aham” há pelo menos 40 minutos. Do outro lado Leticia só choramingava. Reclamava há dias do comportamento de Fábio. Distanciamento, agressividade, indiferença. De alguns dias para cá ele estava mudado. Achava tudo ruim. Alternava momentos de euforia com uma tristeza profunda e aparentemente sem motivo. Mas o que mais intrigava Camila não era ele e suas atitudes. Era a sua amiga.

Leticia sempre se mostrou forte, independente e decidida. De uma arrogância impar, adorava punhetar a própria imagem. Gabava-se de sua personalidade forte, e que segundo ela “assustava os homens”. Perita em se vangloriar, esnobava a todos com seu enciclopédico conhecimento, conquistado com pesquisas no Google. Seu emprego sempre foi o melhor. Ela sempre era a mais bonita da festa. Seus conselhos, os mais acatados. Suas sugestões, as mais certas. Parecia entender sempre de todos os assuntos. Tinha-se a impressão de que discorria sobre novas técnicas de reprodução assistida do Surucuá da Cauda Vermelha com mais propriedade que o maior dos biólogos, mesmo sendo advogada. Mas também era arquiteta, designer, engenheira, decoradora, sommelier, barista e, segundo ela mesma, fazia o melhor molho bechamel de todo o mundo. “Aprendi a fazer em nossa viagem a Paris”, contava, pela enésima vez. E olhava pra ele, fazia uns gracejos e falava num irritante tatibitati.

Era a maior especialista em orelhas de livros. Tornava-se perita nos clássicos da literatura, sem ter chegado nem à décima página. E fundamentava sua vidinha assim, ostentando uma aura de completa felicidade. Fábio não era muito diferente, também adorava valorizar o próprio passe. Era o casal perfeito e bem sucedido. E toda essa aparente perfeição chegava a ser chata. Mas fora isso, dava até pra se divertir com eles. No fundo, os dois eram relativamente bons amigos. Do seu jeito, mas eram.

E agora, estava ela ai, completamente zureta. Sempre se preocupou em ter suas coisas, sua vida. E no momento em que Fábio cogita até uma separação, sua aparente estabilidade desmorona. E com isso lá se vai o sossego de Camila, e por consequência, de seu namorado. Leticia já não tinha mais horários próprios pra inconveniência. Ligava quase o dia todo para contar alguma coisa, desabafar ou se lamentar. Havia adquirido uma personalidade piegas. Materializava seu sofrimento em forma de versinhos cafonas, ou de pensamento enviados por e-mail ou mensagem no celular. Chegou a confessar que preferia morrer a viver sem ele.

Batia na porta dos amigos nos horários mais impróprios. Parecia até de propósito. Era só Camila pensar em sair, que ela aparecia. Juliano, seu namorado, ficava puto. E ficava em casa, fazendo sala pra amiga sem noção. Ele alertava, para que não tomasse partido:

- Vai que eles se acertam. Ela ainda vai brigar com a gente, por chamá-lo de vagabundo – dizia.

- Mas ela é minha amiga. Preciso dar apoio.

Letícia chegou ao fundo do poço. Não se depilava mais, vivia com o cabelo desgrenhado e cheirava a meia suja. Tirou férias só pra poder curtir sua fossa em casa sossegada. Camila e Juliano alternavam visitas pra ver se estava tudo bem, mas depois que ele a encontrou deitada no sofá, de calcinha bege, com o sutiã de alças frouxas e com o braço levantado e mostrando os cabelos do sovaco disse que nunca mais iria. E isso se arrastou por mais alguns dias.

Na semana seguinte, Camila foi visitar a amiga. Deu de cara com a porta. Tocou a campainha de Leticia e ela não abriu. Preocupou-se. Ensaiou uma fungada no ar pra ver se não tinha cheiro de gás. Esmurrou a porta, chamou e nada. Ligava, mas o celular só dava fora de área, e lá dentro ninguém atendia. Quando já se preparava para chamar a polícia, pensando no pior, ouviu as risadas de sua amiga. E de Fábio. Do elevador saiam os dois, abraçados, com uma sacola de pão e o jornal. Tênis, bermudinha, camiseta. Tinham ido correr no parque e agora iam preparar o desjejum. Camila ficou atônita, mas já estava com tanta preguiça daquela situação toda, que se contentou em só achar bom. Sorriu, fingiu que estava tudo normal e nem sequer quis perguntar muita coisa. Apenas agradeceu o convite para o café e foi embora. Viu que novamente a paz reinava naquela casa de gente doida. Saiu dali o mais rápido possível.

Uma semana depois, ligou para Letícia. Queria saber como estavam as coisas entre ela e Fábio. Foi surpreendida com um seco e lacônico “estão ótimas”. E como ela não retribuía a pergunta, Camila se pronunciou. Disse estar com alguns probleminhas com Juliano. Preocupações, desconfianças. Surpreendeu-se:

- Hummm. Chato, né? – disse Letícia, sem muito interesse.

- É. Acho que estou precisando conversar um pouco. Vamos sair?

- Tá. Eu te ligo. Beijo. – e desligou, sem nem esperar muito.

E claro, Letícia não ligou.

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

Teimosia


Não acreditava que alguém tivesse coragem de ligar àquela hora da manhã. Tá certo. Já passava das 9h, e ela estava mais do que atrasada. Ainda cogitava se iria ou não trabalhar. O som irritante perturbava e não a deixava pensar numa boa desculpa para ligar para o trabalho. Ficou puta. Não tinha levantado nem para desligar o despertador, que ficava longe de propósito, só para fazê-la ir até lá e forçadamente desligá-lo. Mas naquele frio? De madrugada levantou para fazer xixi e ao sentar na tábua sentiu como se sua bunda fosse uma balsa lançada aos náufragos de algum navio explorador da Antártida. Só de pensar em pisar no chão frio seus pelos eriçavam. “Cacete”, pensou. “Vou lá atender logo essa merda”. Enrolou-se no edredon e foi.

- Alô. Falou, com uma voz meio sonolenta, meio irritada.

- Você é foda. Fui dormir puto com você – despejou, sem nenhuma introdução ao assunto.

Não estava acreditando. Thiago, é você? Perguntou agora um pouco mais desperta por causa do susto. Tinham se visto na noite anterior, quando mais uma vez discutiram e não chegaram a lugar nenhum. Mesma coisa de sempre. Ela cobrava uma decisão, ele enrolava. Brigavam, trocavam um bom par de ofensas, e quando cansavam de bater boca, iam pro motel. Ele já preparava o rosto, sabia que levaria um belo tapa estalado e reclamações de que era um safado, um sem-vergonha, que só queria comê-la. Ele fingia um ar de ofensa. Simulava um “vamos embora agora”. Ela o mandava calar a boca, jogava-o na cama e obrigava-o a tirar logo a roupa. Já que estavam ali e teriam que pagar, que aproveitassem, ela resmungava. Era o sinal. E pronto. Duas, três horas de um bom exemplo de como se fazer sexo. Não eram de muitos malabarismos. Sem peripécias kama sútricas. Tinham suas três ou quatro posições favoritas e vez ou outra arriscavam algumas variações.

Fora uns gemidos e dois ou três palavrões, fodiam em um relativo silêncio, quase religioso. Como se qualquer palavra errada pudesse atrapalhar, ou afastar as outras sensações. O cheiro que exalava cada vez que ele metia com força. O suor, que se formava nas covinhas das costas dela. O hálito dele, com indícios de que tinha fumado novamente aqueles cigarros mentolados. Trepavam de olhos abertos. Ela adorava ficar olhando aquela cara de safado, a barba mal feita, a boca grande. Ele ficava doido com o sorriso dela. Amava cada expressão que saía de seus olhos. Trocavam de posição. Agora ele sentia o peso dela. Davam as mãos, entrelaçavam os dedos, e ela cavalgava com força. Jogava o cabelo pra trás, e ele juntava as pernas para melhor penetrá-la. Cansava, saía de cima e deitava. “Vai, me chupa”, ela pedia. Tinha saído com poucos caras, mas duvidava que alguém fizesse aquilo com a perícia dele. E justiça seja feita, era algo do qual ele se orgulhava. E na verdade, tinha um pouco de vaidade nisso. Adorava ouvir um “vou gozar” e acelerava as lambidas. Ela gritava e prendia a cabeça dele em suas pernas, que só paravam de tremer meia hora depois. Ficavam se olhando um pouco, descansavam, ficavam abraçados. Ela ia tomar banho. Ele ficava zapeando pelos canais pornô. Depois era a vez dele ir pro chuveiro. Vestiam-se. Ele a lembrava das duas vezes em que esquecera um dos brincos. Da última vez ligou pra ele de madrugada, e o fez voltar ao motel. Eram joias de família, lembranças da avó. Tinha dessas coisas.

Ele a deixava em casa, mas antes de sair do carro brigavam mais um pouco. Juravam não mais se ver. Ela não ligaria mais e, se caísse em tentação, que ele não atendesse. Mas voltava atrás. Detestava ser ignorada. Que ele atendesse, mas não cedesse ao apelo por um novo encontro. Ele só olhava assustado. Amava aquela peste. Só não tinha coragem de admitir. Tinha uma predisposição a complicar as coisas, um talento especial. Associava amor a relacionamentos. Relacionamentos a cobranças. Cobranças a...sabe-se lá. Já fora noivo duas vezes. Escolhas ruins, ou pelo menos inapropriadas para o momento. Enfim, estava ele aí, sem muita disposição para arriscar novamente. E enquanto ela falava, ele olhava para suas mãos. Vermelho vivo nas unhas. Anéis e algumas pulseiras. Lembrou que devia estar cheio de arranhões nas costas. Arderia mais tarde. Sorriu. Aspirou fundo. O cheiro dela estava em todo no carro. Ele lembraria dias. O tempo suficiente para um novo encontro, coisa que ela garantia que não aconteceria. Pelo menos até o próximo telefonema.

- Puto comigo? E por quê? – perguntou, já sentando no chão, e esperando a história.

- Porra. Você falou que saiu com um cara. Que estão “se conhecendo”. Ah, vai tomar no cu.

Ela riu do outro lado, e confirmou:

- É. E ele é um partidão. Mas quer saber? Acho que ainda prefiro você. A sua pegada.

Ele vacilou. O silêncio momentâneo indicava a confusão que devia ter se formado em sua cabeça. Ensaiou um resmungo, mas mudou o tom:

- Quer ir tomar café? Passo aí em meia hora. Depois te levo pro serviço.

- Hum. Não se preocupe. Hoje não vou. Já até liguei. Mas passe aqui sim. Vou tomar banho.

- Ok. Beijo.

Desligou. Ela sorriu. Sabia que ele demoraria bem mais do que meia hora. Ia dormir mais cinco minutinhos. A cama estava tão quentinha. Ah, sim. Tinha que inventar uma boa história pra não ter que ir trabalhar.

domingo, 27 de junho de 2010

Girando


Levantou-se só pra poder dar um soco no despertador, que pela segunda vez começava a tocar de forma estridente. Achou-o do outro lado da cama, apertou o botão de desligar e voltou a dormir. Mais cinco minutinhos, pensou.

Meia hora depois despertou de vez. Espreguiçou-se um pouco na cama, limpou um pouco de remela nos olhos, deu uma leve puxada na calcinha, que apesar de grande, teimava em se enfiar por entre aquelas duas bandas glúteas. Enfim, levantou. Foi saltitante até a cortina e abriu num só movimento as duas partes.

Sentiu vontade de fazer como nos filmes, ou nos comerciais de margarina. Abrir as janelas, respirar profundamente, contemplar o sol e dar bom dia aos passarinhos. Ficou com medo de parecer ridícula demais, até porque o dia estava escuro, nublado, com uma garoa fininha. Mas nada daquilo importava. Era uma nova mulher. Ou pelo menos ia tentar ao máximo se convencer disso.

Apesar do baixo astral, e da pontinha de tristeza, estava quase se sentindo realizada. A última semana, de brigas intensas, discussões terríveis e cenas vergonhosas ajudaram a tomar enfim a decisão. O dia mais feliz de sua vida foi quando se deu conta de que para nada precisava dele.

Afinal, trabalhava duro. Tinha seu próprio dinheiro e pagava suas contas em dia. Atrasar e pagar juros deixavam-na em pânico. Era organizada, coisa que ele não fazia a mínima questão de ser. Passou a acompanhar as dicas de moda dos estilistas da TV. Encurtou em alguns bons centímetros todas as roupas. Novo corte de cabelo e nova linha de esmaltes pra escolher. Pela primeira vez, resolveu inovar na depilação, mesmo que ninguém fosse ver.

Tomou até coragem de usar os conselhos dados pela revista Nova. Queria sair pela noite, frenética e enlouquecendo os homens em 15 passos, e aprender a gozar com o chuveirinho. Redescobriu as velhas amizades do tempo da escola. Embora um pouco gordas e com jeito de biscate, se tornaram boas companhias para sair. Sentiu-se um pouco deslocada no começo, por perceber que nada mais tinham em comum.  Na sua volta ao cenário noturno, conquistou o cara mais gato da boate. E conseguiu impressioná-lo: vomitou três vezes em seu carro, antes que ele a deixasse sentada, sozinha, na sala de espera do pronto socorro. No outro dia, ainda não refeita da vergonha, leu o singelo bilhete que ele havia deixado, dentro do seu bolso: “você é doida. Vai pro inferno, peste”. Tava enjoada demais até pra entender se ele estaria brincando ou não.

Tudo isso durou pouco. Até bem menos do que ela imaginava. Com o passar dos dias, começou a sentir uma tristeza, que foi aumentando gradativamente, a medida em que o tempo esfriava. Cansou da rua, da farra. Do trabalho, ia direto pra casa. Enfiava-se num moletom velho, tascava no pé uma meia colorida de algodão, e devorava pacotes giga de amendoim japonês, com aquele sempre famigerado e depressivo brigadeiro de colher, o companheiro inseparavel da fossa e dor de cotovelo. Chorava rios de lágrimas assistindo qualquer coisa, desde a maratona com todos os filmes do Patrick Swayze na tv a cabo, até o programa do Amaury Junior. Seu telefone vivia desligado, pois já cansara de inventar desculpas para não sair com suas amigas, e muito menos com os caras que tinha conhecido no bingo. Só sentia vontade de ligar pra uma pessoa. Ensaiou isso várias vezes, mas da última vez em que se falaram, prometeram mutuamente que aquela seria pra valer: chega. E deixava os dias passarem, arrastando correntes pela casa.

E ele? Bem. O dia mais feliz de sua vida foi quando se deu conta de que para nada precisava dela.

 

 

 

sexta-feira, 28 de maio de 2010

Intimidade


 

Procurava a cueca pelos cantos do quarto quando ela soltou essa:

- Semana que vem eu me caso - falou, deitada. Olhando pra cima e mexendo no piercing do umbigo.

Ele nem se abalou. Continou a procurar o resto da roupa. Achou perto da porta do banheiro. Inspecionou a peça, procurando alguma coisa que pudesse ser estranha ou pegajosa. Vestiu, foi ao banheiro e fechou a porta. Não era a primeira vez que se viam pelados. Já estiveram várias vezes ali. Talvez até mesmo naquele quarto. Mas por mais intimidade que tivessem, ele ainda se recusava a fazer xixi na frente de outra pessoa. Ela achava frescura, mas já nem ligava mais. Deu descarga, e antes de abrir a porta perguntou lá de dentro, num tom mais alto: ah vai, é?

Num muxoxo, respondeu que sim. Ele riu e sentou-se na cama pra desvirar a camisa. Achou um buraquinho nela. Que merda. Minha camiseta da sorte, pensou. Por ele, o assunto já teria morrido lá atrás, mas ela insistiu. Reclamou um pouco. Disse que não sabia se era bem isso que queria. Ainda se achava muito nova, e todo aquele blá blá blá típico de quem procura uma justificativa para não se amarrar. Adoraria continuar aprontando, sendo livre. Saindo a hora que quisesse e sem ter que inventar desculpas esfarrapadas por chegar em casa com marcas na bunda a arranhões nas costas. No fundo, admitiu que estava mais conformada do que feliz. Mas não queria aborrecê-lo mais com esse assunto. De qualquer forma, ia aproveitar, porque depois não poderia mais. Achou o comentário estranho. Largou o cinto e perguntou:

- Não poderia exatamente o quê? E por quê?

Numa expressão de ironia, como se aquela fosse a mais cretina das perguntas, respondeu: oras, depois que casar não pode mais. Ele, ainda confuso, tentou argumentar:

- Peraí. Vocês já vivem juntos. Tem até um filho de cinco anos. Que história é essa?

Ela, então, encerrou qualquer tentativa de réplica:

- Sim, mas agora vou jurar fidelidade.  E diante de um monte de gente.

Ficou meio sem ação. Um filme passou diante dele. Lembrou de todas as vezes em que estiveram juntos. Ela, sempre apressada. Quantas vezes fizeram sexo sem preliminares. Quantas outras ainda dentro do carro, ou mesmo em pé ali, na garagem do motel. Preferia sair com ele à tarde, logo depois de deixar o filho na escola. Ele também adorava tudo aquilo. Sempre preferiu as compromissadas. Noivas, casadas e por aí vai. Não pegavam no pé, não cobravam nada. Ela era perfeita para ele nesse quesito. E com o tempo foram até se tornando mais amigos. Incrivelmente, o tesão que sentiam um pelo outro, não diminuia, nem quando ela comentava sobre as cortinas novas, ou reclamava do preço do xarope infantil. Achava até graça na forma como ela compartihava isso com ele.

Olhou demoradamente pra ela que, de costas, dava pulinhos vestindo a calça. Só nessa hora percebeu que ela tinha engordado um pouco, mas continuava linda como sempre. Suspirou. Esperava realmente que ela não acreditasse muito nas próprias convicções. Ou que pelo menos abrisse uma exceção para ele, vez ou outra.

Sorriu pensando nisso. E voltou a procurar as meias.

quinta-feira, 6 de maio de 2010

Padaria


Esperava aflita. Sentada, batia os joelhos de nervoso. O esmalte Roxo-Mocinha da linha Impala Adriane Galisteu já tinha sido todo comido, tamanha a sua gastura. Nesse intervalo de meia hora em que ele havia ligado, já tomara mais de três cafés. Comeu um pão de queijo e olhava de soslaio pra um quindim. Quando finalmente tomou coragem pra pedir o doce, ele chegou. A cara não era das melhores, e antes até do bom dia já reclamou do calor.


Ela ignorou a rabugice, e deu-lhe um beijo estalado. Ele não deu importância. Aboletou-se na cadeira e pediu que ela também sentasse. Tenha modos, Martinha, ele disse, vendo que ela se sentava de qualquer jeito, mesmo de saia. Fez a festa da peãozada, que também tomava café por ali. Obedecendo, usou as mãos para tentar esconder a visão de sua calcinha amarelo vivo, que teimava em despontar por entre aquelas roliças coxas.


Na verdade, tanto fazia a calcinha aparecer ou não. Queria ouvir o que Augusto tinha a dizer. Seria finalmente o pedido? Desde o dia anterior, quando ele, com voz solene ligara dizendo ter algo de importante a falar, tinha calafrios só de imaginar que seria isso. Depois de sete anos, dez meses e vinte e três, quase vinte e quatro dias, a fortuna sorria pra ela. Iria se casar. Com véu, grinalda e flores de laranjeira.


Claro. Já não era mais virgem desde aquela noite chuvosa dentro do fusca de Augusto. Ele tinha sido sim o primeiro. Bem, primeiro, primeiro...teve o Serginho, o Lauro, o Pedroca. Mas foram só sarrinhos, mão no peitinho, dedinho maroto. Mas ali, enfiando, na real? Só o Augusto. 


Encerrou seus devaneios, e pediu que ele falasse logo. Brotoejas de excitação começavam a surgir entre as coxas. Só achava estranho o pedido ali, uma padaria? Mas claro. Augusto queria sondar o terreno. Nem faria o pedido oficial. Só queria ter certeza. Na certa, seria discreto, fingiria, só pra saber. Diria que um amigo está pensando em pedir a noiva em casamento, mas tem dúvidas, medo dela não aceitar. Claro que aceito, oras. 


Nem teve tempo de imaginar o churrasco de noivado. Ela, com seu vestido novo de viscolycra, ele, de bermuda cargo e mocassim de franjinha. Logo recebeu a pancada. Dura. Rápida. Seca. Acho que não dá mais. Quero terminar, disparou simplesmente.


Fora de uma frieza glacial. Cruel. Inclemente, como um guerreiro mongol. Ela ficou zonza. Sentiu esgares de azia. Ânsia de vomito. Aturdida, só teve tempo de pensar. Ainda bem que não pedi o quindim. Odeio vomitar doce. Sua pressão caiu. Apoiou a cabeça na mesa.


Já não o ouvia mais. Suas explicações do motivo ficaram ao vento. A menina nova que ele conhecera, a pouca idade, a falta de sintonia dos dois. Ela só pensava em parar de ver tudo rodando. E quando finalmente conseguiu, pediu uma água mineral. Bebeu o copo de um só gole. Respirou. Levantou os olhos. Puxou o ar. Olhou seriamente pra ele. Seus olhos grandes de personagem de mangá ficaram cerrados, tamanho o ódio.


Pensou em um milhão de impropérios, afrontas e injúrias pra dirigir a ele. Toda a dedicação, amor e zelo que lhe dedicara. Mas lhe faltavam forças. Só teve fôlego para constatar o óbvio.


- Seu grande filho de uma puta. Tanto lugar para me dar um pé na bunda, tinha que ser nessa padaria horrorosa?


Nesse momento, as xícaras pararam no ar. Um silêncio sepulcral só foi quebrado pelo ranger da cadeira de Martinha, que conseguiu se levantar. Girou nos calcanhares e saiu pisando duro. Foi ao balcão, pediu seis quindins pra viagem. Tirou umas notas amassadas da bolsa enquanto olhava para a atendente, pedindo cumplicidade. Voltou atrás. Guardou o dinheiro. Retornou à mesa, olhou mais uma vez para Augusto e lhe deu um retumbante e sonoro tapa. Um ui coletivo e abafado foi o que coroou o espetáculo. Antes de deixar a padaria, voltou ao balcão e disse com voz triunfante: ele paga. 


quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

Amigas


André e Juliana já estavam saindo há um mês. Conheceram-se numa tarde no boteco, quando foram apresentados por amigos em comum. Ele já estava bêbado, e ela com intenção de conseguir ficar também. Permaneceram ali até a noite. Um bom número de caipirinhas depois, ainda conseguiram trocar telefones. E começaram a se ver com frequência.

Iam ao cinema, praia, teatro. Almoçavam juntos. Tecnicamente formavam um belo casal, mas mantinham um certa margem de segurança no relacionamento. Era uma espécie de acordo: não estavam namorando. Era uma situação aparentemente cômoda para os dois. Estavam simplesmente curtindo a companhia um do outro. Ela tinha acabado de sair de uma relação tumultuada. Ele, sempre muito ocupado, não conseguia parar com ninguém. Claro, fora o fato de que era assumidamente um galinha. Mas estavam se dando bem, conseguiam se divertir, tinham afinidades e o sexo era igualmente muito bom. Em teoria, estava tudo correndo naturalmente, apesar de não assumirem nada.

Dias depois, Juliana terminava de se ver mais uma vez no espelho, quando o celular tocou. Era André, que tinha acabado de estacionar na frente de sua casa. Passou a mão mais uma vez pelo belo vestido preto, ajeitou o cabelo e saiu. Quando entrou no carro ele ainda estava sorrindo, meio abobado por aquela linda visão, e um pouco inebriado pelo perfume delicioso. Beijaram-se, trocaram alguns elogios e foram pro aniversário de Raquel.

Chegaram no prédio da amiga de Juliana. Ele conhecia metade das amigas dela de vista, ou de ouvir falar. Entraram, cumprimentaram a aniversariante e foram beber alguma coisa. Aproximaram-se de um grupo pra conversar, e foi quando ele viu Beatriz. As duas se abraçaram. Descobriu depois que eram grandes amigas. Ela, mais velha tinha dado muito apoio a Juliana, quando terminou com o ultimo namorado. Era tratada como “mamãe” por ela.

Tinha uma beleza normal, apesar de um corpo deliciosamente bem feito para seus trinta e seis anos e uma filha adolescente. Alta, pernas grossas, uma bundinha redonda e durinha. E peitão. Ah. Ele adorava um peitão. Podia passar horas apertando, amassando, chupando, lambendo, massageando, mordendo e todo tipo de perversão possível com um mamilo. Depois desse devaneio envolvendo peitos, voltou a realidade quando Juliana os apresentou. Uma hora de conversa e algumas doses de Jack Daniels depois, já eram grandes amigos. Tinham inclusive, trocado telefones. Sem que Juliana tivesse visto, claro.

Uma semana depois, enquanto chegava em casa de uma festa, exatamente as duas da manhã, André se assusta com o torpedo. “Ta fazendo o que de bom, heim?”. Era de Beatriz, que a essas alturas já era Bia pra ele. Apesar de achar estranho, gostou da mensagem, e respondeu. Ela estava numa comemoração com os amigos do trabalho e queria que ele fosse lá. Preferiu não se precipitar e decidiu ficar em casa. Passaram mais de uma hora assim e quando o último torpedo foi mandado, um possível encontro já estava marcado para o dia seguinte. E parecia que a fortuna sorria pra ele, ou Júpiter estava na terceira casa de Urano, ou qualquer merda dessas que significasse sorte, porque exatamente naquela semana, Juliana estava fora da cidade a trabalho. Caso fossem aprontar, o momento seria esse.

Logo pela manhã, André mandou um torpedo pra Beatriz. Estranhamente, ela não respondeu. “Deve estar ocupada”, pensou. Mais tarde ligaria pra ela e combinariam. Estava um dia bonito, ensolarado. Trabalhou bem. Mas uma coisa ainda martelava sua cabeça: porque Beatriz, sendo grande amiga de Juliana, queria sair com ele? “Caralho! É uma cilada”, cogitou. Na certa as duas tinham combinado. Era um teste que fariam a ele. Mas queria provar o que exatamente? Que ele era fiel? Ora. Nunca tinham feito promessas um ao outro. E apesar de não terem discutido nada sobre isso, não poderiam ter cobranças. Sendo assim, se ela queria confirmar alguma coisa, estava traindo o “pacto” deles. Sentiu ainda mais vontade de consumar o ato. No fim das contas, ele estava conformado com sua condição de safado. Queria saber se elas poderiam bancar a posição que estavam tomando.

Na saída do trabalho, ligou pra Beatriz. Ela atendeu com uma voz diferente do entusiasmo habitual. Ao mesmo tempo que achou estranho, parecia entender o que estava acontecendo. Mas queria ouvir dela.

- Acho que não podemos sair – disse ela, sem rodeios.

- Ah, é? Por que mesmo?

- A Ju é minha amiga. E está gostando de você.

Ah, merda. Por essa ele não esperava. Ou talvez esperasse, o que o assustou mais ainda. Apesar de seu jeito aparentemente desligado, era atencioso, gentil, cavalheiro. Bem o naipe que encantava alguns tipos de mulher. Não seria a primeira vez que uma eventual conquista se tornaria um pesadelo psicótico de perseguição em sua vida. Pensou que aquilo poderia ficar mais complicado do que imaginava. O fato de Juliana estar realmente gostando dele, já o deixava em pânico. Se ela descobrisse que ele o traiu com sua grande amiga, aí sim. Estaria fodido de verdade. Tinha pavor daquelas histórias de mulheres vingativas que jogam óleo fervente nos maridos enquanto eles dormem, ou cortam seus pintos num acesso de raiva. Só que agora queria pagar pra ver, de qualquer jeito.

- Bem, não posso te obrigar – ele falou, com uma calma irritante.

- Como não? Respondeu, parecendo decepcionada.

- Eu entendo. São amigas. Não quero estragar nada disso.

Pelo momento de silêncio que ela fez ao telefone, ele sentiu que não era essa a resposta que ela queria ouvir. Talvez desejasse insistência, um pedido mais convincente. Queria ser convencida, persuadida. Mas ele jamais faria isso. Conversaram mais um pouco, até que o tom de preocupação e remorso dela pareciam desaparecer. Disse que estava confusa, e que ia sair um pouco, pra tentar organizar a cabeça. André ouviu pacientemente e falou que caso ela mudasse de ideia, ou quisesse conversar, poderia ligar pra ele. E alguma coisa lhe dizia que ela faria isso. Não estava nem um pouco preocupado em pensar o motivo pelo qual ela trairia a confiança de sua amiga. Estaria tão interessada nele, a ponto de arriscar sua amizade? “Foda-se”, pensou. Se ela fosse tão ardilosa assim, Juliana nunca saberia de nada. Se soubesse, foi porque ela contou, e aí, quem arcaria com a responsabilidade não seria ele. Na sua lógica as avessas, a traição partiria dela.

Resolveu aproveitar o fim da tarde pra tomar uma cerveja com uns amigos. Jogava conversa fora e ria bastante, quando sentiu o celular vibrar no bolso. Era Beatriz, querendo saber onde ele estava. Depois que ela confirmou saber onde ficava o local, desligaram. Meia hora depois ele olhava do outro lado da rua, enquanto ela descia do carro. Vestidinho verde e leve, sandálias, poucos acessórios. O cabelo ainda estava meio molhado. Adorou essa produção com cara de “não-estou-nem-aí-mas-é-mentira”.

Ele se levantou e a beijou no rosto. Apresentou-a para as outras pessoas na mesa e perguntou se ela queria alguma coisa. Recusou. Estava um pouco nervosa, aflita. Mas sorria e conversava normalmente. Somente os dois percebiam a grande tensão que pairava no ar. Mais uma hora e as pessoas começaram a se despedir. Pediram a conta, pagaram, e cada um foi para seu carro. Exceto ele, que deu a chave para um amigo que estava de carona. Iria no carro com ela.

Não conseguiram nem chegar ao motel. Uma rua escura e deserta foi onde pararam o carro e treparam alucinadamente. Apesar de apertado, para eles não poderia ter lugar melhor. Tornou a situação ainda mais clandestina e perigosa. Conversaram mais um pouco, sem nem sequer tocar no nome de Juliana. Mais sexo, dessa vez com calma, aproveitando melhor. Vestiram-se. Ela o deixou em casa e foi embora. Esperou o carro virar a esquina e sorriu. Tirou a chave do bolso e pensou que quando a culpa batesse na porta dela, seria com força. Talvez tentasse ligar pra ela no dia seguinte, mas sabia que ela não atenderia.

 

 

domingo, 22 de novembro de 2009

Cinema


Regina era sim uma mulher única. Desde cedo aprendera a cozinhar, e o fazia magistralmente. Da mais simples farofa de ovos, até arriscava um prato mais elaborado sem passar vergonha. Também costurava, bordava, pintava em porcelana e outros afazeres de cunho doméstico. Cuidava da casa e dos filhos com uma dedicação quase religiosa. E era devotada a seu marido. Aliás, talvez respeitasse mais o compromisso do casamento do que aquele homem.

Se não era a mais bonita das mulheres, tampouco era a mais horrenda. Tinha uma beleza comum, discreta, apagada até. Era daquelas que não tinham muitos atrativos que a fizessem se destacar. Peitos pequenos, pouca bunda, pernas finas. Da adolescência sobraram algumas marcas provocadas pela acne. Mas apesar dessa pouca graça, possuía dois grandes olhos verdes, que faiscavam quando estava feliz. O que raramente acontecia. Há muito tinha largando seus sonhos para ser a dona de casa ideal. Ele provinha o sustento, ela cuidava do resto. Nem se lembrava a ultima vez que ele a tocara com desejo. E se pensasse bem, talvez ele nunca o tenha feito. Eventualmente uma trepada burocrática era o máximo de carinho que ele dedicava a ela. Sempre fazendo questão de desmerecê-la.

Era um escroque. Um crápula. Tratava mulher e filhos como se fossem lixo.  Sempre aos berros e safanões. Não era capaz do mais ínfimo gesto de ternura e respeito. Chegava quase todas as noites bêbado, fedendo a perfume doce e gritando. E madrugada afora, lá ia Regina esquentar alguma coisa para aquele animal comer. Mal terminava de raspar o prato, reclamava da comida, proferia algumas ofensas a sua esposa e se dirigia para o quarto. Cinco minutos depois já estava roncando, sem nem mesmo ter tirado a roupa.

Tanta resignação dela era vista com espanto pelo resto da família, pela vizinhança, pelos filhos. Ninguém compreendia como aquela mulher, sendo tão virtuosa, conseguia suportar tanta humilhação. Não tinha uma alegria, um momento de paz naquela casa. A única coisa que a afastava daqueles momentos de amargura, eram suas idas ao cinema, toda a semana. Aproveitava que Célio estava no trabalho e os filhos na escola e ia, tranquilamente assistir as sessões da tarde. Fazia isso duas, ou três vezes na semana. Voltava plácida, serena, descansada. Era  como se todo o peso do mundo ficasse na sala de projeção. Se era possível ser feliz por apenas alguns instantes, ela assim conseguia.

Certa noite ao chegar em casa, mais uma vez completamente embriagado, já foi aterrorizando. Acordou mulher, filhos, e provavelmente todo o bairro. Gritava como um louco. Exigiu comida. E lá foi Regina, com os olhos ainda meio grudados de sono para a cozinha. No meio do trajeto foi surpreendida por Célio, que como um possesso a agarrou. Estava transtornado. Tentava a todo custo beijá-la. Enquanto ela tentava se desvencilhar, teve sua roupa rasgada. Mesmo nua, e sendo lambida, mordida e apalpada por aquela figura repugnante, mantinha uma aparência de frieza e calma, que só era quebrada por duas ou três lagrimas que rolavam do seus olhos. Quase meia hora depois, ele estava saciado. Enquanto se levantava e ia para o banheiro, ela permanecia ali deitada no chão da sala. Coberta daquela saliva nojenta, remontou mentalmente toda a tortura, e quando se levantou, percebeu um arroio pegajoso de esperma que escorria pelas suas pernas. Sentiu tanto asco que se pudesse, teria arrancado a própria pele. Procurou se recompor, limpou-se um pouco com os farrapos de sua calcinha, e foi para a cozinha, esquentar o macarrão para Célio. Naquela noite, ela não dormiu.

No outro dia, ele acordou como se nada tivesse acontecido. A tratou com a mesma indiferença  de sempre. Ela de costas e com as mãos apoiadas na pia, nem sequer se virou pra olhar enquanto ele saia para o trabalho. Permaneceu ali por alguns minutos e finalmente desabou em lágrimas. Já pela tarde, as crianças chegaram da escola. Deu comida a eles, e quando estava saindo para seu habitual cinema, recebeu a ligação: Célio havia sofrido um acidente. Transtornada, pegou o endereço do hospital e saiu desarvorada atrás de um táxi. Não sabia o que lhe dava mais remorso, se era a preocupação tamanha por alguém que nenhum valor lhe dava, ou se a culpa por esse pensamento hesitante. Ao chegar, ele já estava sendo operado. Um ônibus o arrastara alguns metros. Sobreviveria, mas depois dos pinos e implantes, no mínimo uns seis meses ate voltar a andar.

E varias cirurgias depois, foram pra casa. Ele, de talas e gesso, com braços e pernas imobilizadas precisava de ajuda até para beber água. Regina, como sempre, solicita. Mas de nada adiantava. Pra proporcionar mais conforto a ele, arrumou um colchão do lado da cama, e ali se instalava toda noite, acordando a qualquer hora, pra trazer água ou dar os remédios. A dor e a impotência da situação só serviram pra deixá-lo ainda mais agressivo. Gritava, praguejava e a ofendia com insultos cada vez piores. Dizia sentir saudades das putas, e que assim que pudesse se levantar, ligaria pra alguma delas, e a mandaria ir ate sua casa, e ainda trepariam ali naquela cama. E gargalhava impiedosamente.

Ao ouvir isso, algo aconteceu. No escuro do quarto era difícil enxergar a mudança daquela expressão sofrida e cansada, para uma feição mais dura. Alguma chave em Regina tinha sido ligada. Um raio a atingiu dos pés até a cabeça. Mesmo tardiamente, a ficha tinha caído. Seus olhos ardiam de raiva. Foi possuída por uma sensação inédita. Ergueu-se do colchão, e com voz ameaçadora disse: “boa idéia”. E antes que ele pudesse retrucar, saiu batendo a porta, o deixando com um ar abestalhado. Mais uma noite, ela passou em claro. E ali, esperando o sol nascer, começava a dar as boas vindas a uma nova pessoa dentro dela.

Ao amanhecer, Célio gritava de dor e fome. E apenas algumas horas depois Regina apareceu no quarto, cheia de sacolas. Tão compenetrada estava, que ignorou totalmente as reclamações dele. Foi abrindo pacotes e embrulhos. Tinha saído bem cedo e comprado roupas, maquiagem, perfume. Abriu uma caixinha com dois lindos brincos e sorriu. Sob uma enxurrada de palavrões, foi para o banheiro, de onde saiu duas horas depois. Parecia outra pessoa. Cheirosa, com os cabelos molhados. Tinha um frescor na pele que há anos não se percebia. A essas alturas Célio estava totalmente sem forças até para reclamar, e sentiu um nó na garganta quando a viu deixar a toalha cair, e pegar seu vestido novo. Arrumou-se, vestiu uma calcinha de tamanho mínimo, colocou os brincos, sandálias altas e borrifou um pouco do perfume. Nem sequer olhou para trás. Bateu a porta, e deixou ali um desfalecido e fraco Célio. Ao sair de casa, trancou o portão, e continuou. Estava aliviada por sair dali. Começou então a repassar mentalmente seu plano. As crianças ficariam na casa dos avós até o final da semana. Estava pronta.

Pegou um táxi, e se dirigiu ao cinema. Mas naquela tarde, não foi atrás de nenhum grande filme em cartaz. E achou logo o que procurava. Na terceira fileira estava ele. Alto, forte, com ombros largos. Tinha uma aparência meio bruta, com aquela barba e o cabelo desgrenhado. De camiseta regata e chinelo, parecia mais um caminhoneiro. Ria alto das besteiras que apareciam no telão. Regina então decidiu que seria ele, e não se fez de rogada. Caminhou decidida ate aquelas cadeiras, e pedindo licença sentou-se ao seu lado. Alguns sorrisos e gracejos depois já estavam se beijando freneticamente. Ele sussurrava besteiras em seu ouvido. De repente, o convite:

- Vamos terminar isso lá em casa.

Ele, apesar de surpreso, topou na hora. Pouco se falaram no trajeto. Ele a alisava por baixo do vestido. E ela tremia, suava frio. Chegaram, pagaram o táxi e ela abriu o portão. Quando entraram, já estava se despindo e se beijando. Ela, com dificuldade pediu pra que esperasse, pois precisava mostrar uma coisa. Mal falou isso ouviu Célio gritando de dor e desespero. O rapaz, se assustou, e antes que fosse embora, Regina o segurou fortemente pela mão e lançou um olhar que o petrificou:

- Você não vai embora daqui até me dar tudo o que eu quero.

Falou isso determinada, enquanto abria os botões de seu vestido. Ele, ainda hesitante, concordou com a cabeça. Entraram no quarto. Célio arregalou os olhos ao ver sua esposa com aquele estranho. Antes que ele pudesse dizer uma só palavra, Regina o silenciou com um gesto. A única pessoa que não estava confusa e chocada ali era ela. Enquanto fechava a porta, olhou para o rapaz, e disse que explicaria tudo com mais calma, mas só depois.