quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

Amigas


André e Juliana já estavam saindo há um mês. Conheceram-se numa tarde no boteco, quando foram apresentados por amigos em comum. Ele já estava bêbado, e ela com intenção de conseguir ficar também. Permaneceram ali até a noite. Um bom número de caipirinhas depois, ainda conseguiram trocar telefones. E começaram a se ver com frequência.

Iam ao cinema, praia, teatro. Almoçavam juntos. Tecnicamente formavam um belo casal, mas mantinham um certa margem de segurança no relacionamento. Era uma espécie de acordo: não estavam namorando. Era uma situação aparentemente cômoda para os dois. Estavam simplesmente curtindo a companhia um do outro. Ela tinha acabado de sair de uma relação tumultuada. Ele, sempre muito ocupado, não conseguia parar com ninguém. Claro, fora o fato de que era assumidamente um galinha. Mas estavam se dando bem, conseguiam se divertir, tinham afinidades e o sexo era igualmente muito bom. Em teoria, estava tudo correndo naturalmente, apesar de não assumirem nada.

Dias depois, Juliana terminava de se ver mais uma vez no espelho, quando o celular tocou. Era André, que tinha acabado de estacionar na frente de sua casa. Passou a mão mais uma vez pelo belo vestido preto, ajeitou o cabelo e saiu. Quando entrou no carro ele ainda estava sorrindo, meio abobado por aquela linda visão, e um pouco inebriado pelo perfume delicioso. Beijaram-se, trocaram alguns elogios e foram pro aniversário de Raquel.

Chegaram no prédio da amiga de Juliana. Ele conhecia metade das amigas dela de vista, ou de ouvir falar. Entraram, cumprimentaram a aniversariante e foram beber alguma coisa. Aproximaram-se de um grupo pra conversar, e foi quando ele viu Beatriz. As duas se abraçaram. Descobriu depois que eram grandes amigas. Ela, mais velha tinha dado muito apoio a Juliana, quando terminou com o ultimo namorado. Era tratada como “mamãe” por ela.

Tinha uma beleza normal, apesar de um corpo deliciosamente bem feito para seus trinta e seis anos e uma filha adolescente. Alta, pernas grossas, uma bundinha redonda e durinha. E peitão. Ah. Ele adorava um peitão. Podia passar horas apertando, amassando, chupando, lambendo, massageando, mordendo e todo tipo de perversão possível com um mamilo. Depois desse devaneio envolvendo peitos, voltou a realidade quando Juliana os apresentou. Uma hora de conversa e algumas doses de Jack Daniels depois, já eram grandes amigos. Tinham inclusive, trocado telefones. Sem que Juliana tivesse visto, claro.

Uma semana depois, enquanto chegava em casa de uma festa, exatamente as duas da manhã, André se assusta com o torpedo. “Ta fazendo o que de bom, heim?”. Era de Beatriz, que a essas alturas já era Bia pra ele. Apesar de achar estranho, gostou da mensagem, e respondeu. Ela estava numa comemoração com os amigos do trabalho e queria que ele fosse lá. Preferiu não se precipitar e decidiu ficar em casa. Passaram mais de uma hora assim e quando o último torpedo foi mandado, um possível encontro já estava marcado para o dia seguinte. E parecia que a fortuna sorria pra ele, ou Júpiter estava na terceira casa de Urano, ou qualquer merda dessas que significasse sorte, porque exatamente naquela semana, Juliana estava fora da cidade a trabalho. Caso fossem aprontar, o momento seria esse.

Logo pela manhã, André mandou um torpedo pra Beatriz. Estranhamente, ela não respondeu. “Deve estar ocupada”, pensou. Mais tarde ligaria pra ela e combinariam. Estava um dia bonito, ensolarado. Trabalhou bem. Mas uma coisa ainda martelava sua cabeça: porque Beatriz, sendo grande amiga de Juliana, queria sair com ele? “Caralho! É uma cilada”, cogitou. Na certa as duas tinham combinado. Era um teste que fariam a ele. Mas queria provar o que exatamente? Que ele era fiel? Ora. Nunca tinham feito promessas um ao outro. E apesar de não terem discutido nada sobre isso, não poderiam ter cobranças. Sendo assim, se ela queria confirmar alguma coisa, estava traindo o “pacto” deles. Sentiu ainda mais vontade de consumar o ato. No fim das contas, ele estava conformado com sua condição de safado. Queria saber se elas poderiam bancar a posição que estavam tomando.

Na saída do trabalho, ligou pra Beatriz. Ela atendeu com uma voz diferente do entusiasmo habitual. Ao mesmo tempo que achou estranho, parecia entender o que estava acontecendo. Mas queria ouvir dela.

- Acho que não podemos sair – disse ela, sem rodeios.

- Ah, é? Por que mesmo?

- A Ju é minha amiga. E está gostando de você.

Ah, merda. Por essa ele não esperava. Ou talvez esperasse, o que o assustou mais ainda. Apesar de seu jeito aparentemente desligado, era atencioso, gentil, cavalheiro. Bem o naipe que encantava alguns tipos de mulher. Não seria a primeira vez que uma eventual conquista se tornaria um pesadelo psicótico de perseguição em sua vida. Pensou que aquilo poderia ficar mais complicado do que imaginava. O fato de Juliana estar realmente gostando dele, já o deixava em pânico. Se ela descobrisse que ele o traiu com sua grande amiga, aí sim. Estaria fodido de verdade. Tinha pavor daquelas histórias de mulheres vingativas que jogam óleo fervente nos maridos enquanto eles dormem, ou cortam seus pintos num acesso de raiva. Só que agora queria pagar pra ver, de qualquer jeito.

- Bem, não posso te obrigar – ele falou, com uma calma irritante.

- Como não? Respondeu, parecendo decepcionada.

- Eu entendo. São amigas. Não quero estragar nada disso.

Pelo momento de silêncio que ela fez ao telefone, ele sentiu que não era essa a resposta que ela queria ouvir. Talvez desejasse insistência, um pedido mais convincente. Queria ser convencida, persuadida. Mas ele jamais faria isso. Conversaram mais um pouco, até que o tom de preocupação e remorso dela pareciam desaparecer. Disse que estava confusa, e que ia sair um pouco, pra tentar organizar a cabeça. André ouviu pacientemente e falou que caso ela mudasse de ideia, ou quisesse conversar, poderia ligar pra ele. E alguma coisa lhe dizia que ela faria isso. Não estava nem um pouco preocupado em pensar o motivo pelo qual ela trairia a confiança de sua amiga. Estaria tão interessada nele, a ponto de arriscar sua amizade? “Foda-se”, pensou. Se ela fosse tão ardilosa assim, Juliana nunca saberia de nada. Se soubesse, foi porque ela contou, e aí, quem arcaria com a responsabilidade não seria ele. Na sua lógica as avessas, a traição partiria dela.

Resolveu aproveitar o fim da tarde pra tomar uma cerveja com uns amigos. Jogava conversa fora e ria bastante, quando sentiu o celular vibrar no bolso. Era Beatriz, querendo saber onde ele estava. Depois que ela confirmou saber onde ficava o local, desligaram. Meia hora depois ele olhava do outro lado da rua, enquanto ela descia do carro. Vestidinho verde e leve, sandálias, poucos acessórios. O cabelo ainda estava meio molhado. Adorou essa produção com cara de “não-estou-nem-aí-mas-é-mentira”.

Ele se levantou e a beijou no rosto. Apresentou-a para as outras pessoas na mesa e perguntou se ela queria alguma coisa. Recusou. Estava um pouco nervosa, aflita. Mas sorria e conversava normalmente. Somente os dois percebiam a grande tensão que pairava no ar. Mais uma hora e as pessoas começaram a se despedir. Pediram a conta, pagaram, e cada um foi para seu carro. Exceto ele, que deu a chave para um amigo que estava de carona. Iria no carro com ela.

Não conseguiram nem chegar ao motel. Uma rua escura e deserta foi onde pararam o carro e treparam alucinadamente. Apesar de apertado, para eles não poderia ter lugar melhor. Tornou a situação ainda mais clandestina e perigosa. Conversaram mais um pouco, sem nem sequer tocar no nome de Juliana. Mais sexo, dessa vez com calma, aproveitando melhor. Vestiram-se. Ela o deixou em casa e foi embora. Esperou o carro virar a esquina e sorriu. Tirou a chave do bolso e pensou que quando a culpa batesse na porta dela, seria com força. Talvez tentasse ligar pra ela no dia seguinte, mas sabia que ela não atenderia.

 

 

domingo, 22 de novembro de 2009

Cinema


Regina era sim uma mulher única. Desde cedo aprendera a cozinhar, e o fazia magistralmente. Da mais simples farofa de ovos, até arriscava um prato mais elaborado sem passar vergonha. Também costurava, bordava, pintava em porcelana e outros afazeres de cunho doméstico. Cuidava da casa e dos filhos com uma dedicação quase religiosa. E era devotada a seu marido. Aliás, talvez respeitasse mais o compromisso do casamento do que aquele homem.

Se não era a mais bonita das mulheres, tampouco era a mais horrenda. Tinha uma beleza comum, discreta, apagada até. Era daquelas que não tinham muitos atrativos que a fizessem se destacar. Peitos pequenos, pouca bunda, pernas finas. Da adolescência sobraram algumas marcas provocadas pela acne. Mas apesar dessa pouca graça, possuía dois grandes olhos verdes, que faiscavam quando estava feliz. O que raramente acontecia. Há muito tinha largando seus sonhos para ser a dona de casa ideal. Ele provinha o sustento, ela cuidava do resto. Nem se lembrava a ultima vez que ele a tocara com desejo. E se pensasse bem, talvez ele nunca o tenha feito. Eventualmente uma trepada burocrática era o máximo de carinho que ele dedicava a ela. Sempre fazendo questão de desmerecê-la.

Era um escroque. Um crápula. Tratava mulher e filhos como se fossem lixo.  Sempre aos berros e safanões. Não era capaz do mais ínfimo gesto de ternura e respeito. Chegava quase todas as noites bêbado, fedendo a perfume doce e gritando. E madrugada afora, lá ia Regina esquentar alguma coisa para aquele animal comer. Mal terminava de raspar o prato, reclamava da comida, proferia algumas ofensas a sua esposa e se dirigia para o quarto. Cinco minutos depois já estava roncando, sem nem mesmo ter tirado a roupa.

Tanta resignação dela era vista com espanto pelo resto da família, pela vizinhança, pelos filhos. Ninguém compreendia como aquela mulher, sendo tão virtuosa, conseguia suportar tanta humilhação. Não tinha uma alegria, um momento de paz naquela casa. A única coisa que a afastava daqueles momentos de amargura, eram suas idas ao cinema, toda a semana. Aproveitava que Célio estava no trabalho e os filhos na escola e ia, tranquilamente assistir as sessões da tarde. Fazia isso duas, ou três vezes na semana. Voltava plácida, serena, descansada. Era  como se todo o peso do mundo ficasse na sala de projeção. Se era possível ser feliz por apenas alguns instantes, ela assim conseguia.

Certa noite ao chegar em casa, mais uma vez completamente embriagado, já foi aterrorizando. Acordou mulher, filhos, e provavelmente todo o bairro. Gritava como um louco. Exigiu comida. E lá foi Regina, com os olhos ainda meio grudados de sono para a cozinha. No meio do trajeto foi surpreendida por Célio, que como um possesso a agarrou. Estava transtornado. Tentava a todo custo beijá-la. Enquanto ela tentava se desvencilhar, teve sua roupa rasgada. Mesmo nua, e sendo lambida, mordida e apalpada por aquela figura repugnante, mantinha uma aparência de frieza e calma, que só era quebrada por duas ou três lagrimas que rolavam do seus olhos. Quase meia hora depois, ele estava saciado. Enquanto se levantava e ia para o banheiro, ela permanecia ali deitada no chão da sala. Coberta daquela saliva nojenta, remontou mentalmente toda a tortura, e quando se levantou, percebeu um arroio pegajoso de esperma que escorria pelas suas pernas. Sentiu tanto asco que se pudesse, teria arrancado a própria pele. Procurou se recompor, limpou-se um pouco com os farrapos de sua calcinha, e foi para a cozinha, esquentar o macarrão para Célio. Naquela noite, ela não dormiu.

No outro dia, ele acordou como se nada tivesse acontecido. A tratou com a mesma indiferença  de sempre. Ela de costas e com as mãos apoiadas na pia, nem sequer se virou pra olhar enquanto ele saia para o trabalho. Permaneceu ali por alguns minutos e finalmente desabou em lágrimas. Já pela tarde, as crianças chegaram da escola. Deu comida a eles, e quando estava saindo para seu habitual cinema, recebeu a ligação: Célio havia sofrido um acidente. Transtornada, pegou o endereço do hospital e saiu desarvorada atrás de um táxi. Não sabia o que lhe dava mais remorso, se era a preocupação tamanha por alguém que nenhum valor lhe dava, ou se a culpa por esse pensamento hesitante. Ao chegar, ele já estava sendo operado. Um ônibus o arrastara alguns metros. Sobreviveria, mas depois dos pinos e implantes, no mínimo uns seis meses ate voltar a andar.

E varias cirurgias depois, foram pra casa. Ele, de talas e gesso, com braços e pernas imobilizadas precisava de ajuda até para beber água. Regina, como sempre, solicita. Mas de nada adiantava. Pra proporcionar mais conforto a ele, arrumou um colchão do lado da cama, e ali se instalava toda noite, acordando a qualquer hora, pra trazer água ou dar os remédios. A dor e a impotência da situação só serviram pra deixá-lo ainda mais agressivo. Gritava, praguejava e a ofendia com insultos cada vez piores. Dizia sentir saudades das putas, e que assim que pudesse se levantar, ligaria pra alguma delas, e a mandaria ir ate sua casa, e ainda trepariam ali naquela cama. E gargalhava impiedosamente.

Ao ouvir isso, algo aconteceu. No escuro do quarto era difícil enxergar a mudança daquela expressão sofrida e cansada, para uma feição mais dura. Alguma chave em Regina tinha sido ligada. Um raio a atingiu dos pés até a cabeça. Mesmo tardiamente, a ficha tinha caído. Seus olhos ardiam de raiva. Foi possuída por uma sensação inédita. Ergueu-se do colchão, e com voz ameaçadora disse: “boa idéia”. E antes que ele pudesse retrucar, saiu batendo a porta, o deixando com um ar abestalhado. Mais uma noite, ela passou em claro. E ali, esperando o sol nascer, começava a dar as boas vindas a uma nova pessoa dentro dela.

Ao amanhecer, Célio gritava de dor e fome. E apenas algumas horas depois Regina apareceu no quarto, cheia de sacolas. Tão compenetrada estava, que ignorou totalmente as reclamações dele. Foi abrindo pacotes e embrulhos. Tinha saído bem cedo e comprado roupas, maquiagem, perfume. Abriu uma caixinha com dois lindos brincos e sorriu. Sob uma enxurrada de palavrões, foi para o banheiro, de onde saiu duas horas depois. Parecia outra pessoa. Cheirosa, com os cabelos molhados. Tinha um frescor na pele que há anos não se percebia. A essas alturas Célio estava totalmente sem forças até para reclamar, e sentiu um nó na garganta quando a viu deixar a toalha cair, e pegar seu vestido novo. Arrumou-se, vestiu uma calcinha de tamanho mínimo, colocou os brincos, sandálias altas e borrifou um pouco do perfume. Nem sequer olhou para trás. Bateu a porta, e deixou ali um desfalecido e fraco Célio. Ao sair de casa, trancou o portão, e continuou. Estava aliviada por sair dali. Começou então a repassar mentalmente seu plano. As crianças ficariam na casa dos avós até o final da semana. Estava pronta.

Pegou um táxi, e se dirigiu ao cinema. Mas naquela tarde, não foi atrás de nenhum grande filme em cartaz. E achou logo o que procurava. Na terceira fileira estava ele. Alto, forte, com ombros largos. Tinha uma aparência meio bruta, com aquela barba e o cabelo desgrenhado. De camiseta regata e chinelo, parecia mais um caminhoneiro. Ria alto das besteiras que apareciam no telão. Regina então decidiu que seria ele, e não se fez de rogada. Caminhou decidida ate aquelas cadeiras, e pedindo licença sentou-se ao seu lado. Alguns sorrisos e gracejos depois já estavam se beijando freneticamente. Ele sussurrava besteiras em seu ouvido. De repente, o convite:

- Vamos terminar isso lá em casa.

Ele, apesar de surpreso, topou na hora. Pouco se falaram no trajeto. Ele a alisava por baixo do vestido. E ela tremia, suava frio. Chegaram, pagaram o táxi e ela abriu o portão. Quando entraram, já estava se despindo e se beijando. Ela, com dificuldade pediu pra que esperasse, pois precisava mostrar uma coisa. Mal falou isso ouviu Célio gritando de dor e desespero. O rapaz, se assustou, e antes que fosse embora, Regina o segurou fortemente pela mão e lançou um olhar que o petrificou:

- Você não vai embora daqui até me dar tudo o que eu quero.

Falou isso determinada, enquanto abria os botões de seu vestido. Ele, ainda hesitante, concordou com a cabeça. Entraram no quarto. Célio arregalou os olhos ao ver sua esposa com aquele estranho. Antes que ele pudesse dizer uma só palavra, Regina o silenciou com um gesto. A única pessoa que não estava confusa e chocada ali era ela. Enquanto fechava a porta, olhou para o rapaz, e disse que explicaria tudo com mais calma, mas só depois.

quarta-feira, 26 de agosto de 2009

Entre livros


Lúcia considerava-se uma privilegiada. Cresceu assim, cercada de livros, de todos os tipos, gêneros e estilos. Desde criança fora estimulada por seus pais, que eram professores, a ler. Por conseqüência, escrevia muito também. Textos, contos, poesias. Tudo a inspirava. Tinha como grande aspiração publicar seu próprio livro.

Formou-se em Letras. Estava tentando um Mestrado em Estudos Literários. Mas, sempre ávida por palavras impressas, achava que ainda não estava satisfeita. Apesar de talentosa e bem sucedida, faltava-lhe algo. Como não sabia muito bem o que seria, conjecturou: já vivenciava tanto os livros e suas histórias. Queria fazer parte de uma delas. Constatou uma certa infelicidade em sua vida. Nunca teve uma grande experiência. Quando criança, quase não brincava na rua. Teve um ou dois namoradinhos. Não ia a festas. Só se sentia um pouco melhor ladeada pelas pilhas de livros de casa, ou da biblioteca.

Tinha um especial carinho pelos romances, mas sua verve dramática falava mais alto. Queria ser a personagem de uma grande tragédia, talvez. Algo com muita dor, intriga, ciúmes, ódio. Felipe, seu noivo, estranhava, mas também achava graça. Como uma pessoa pode gostar mais da tristeza que da felicidade? “Sou assim”, ela dizia. “A melancolia e a dor me motivam muito mais do que a alegria”. Ele, bom rapaz, apenas sorria. Pensava de outra forma. Sujeito simples, sem grandes ambições. Sempre tentava apreciar o lado bom das coisas.

Mais algum tempo de noivado, e finalmente se casaram. Felipe, que entre suas qualidades era extremamente esforçado e trabalhador, conseguiu uma promoção. Seu primeiro pensamento foi pra Lúcia, e como poderia tratá-la melhor com o aumento de seu salário. Sabia que trabalharia mais, teria um cargo de confiança. E ao mesmo tempo que temia a grande responsabilidade, contentava-se em imaginar os mimos com que presentearia sua esposa.

Estranhamente, ela não recebeu muito bem a notícia. Logo associou o aumento da carga horária, com as horas a mais que ele passaria fora de casa. As noites permeadas por serões intermináveis, que, na sua lógica distorcida, seriam apenas pretextos para as farras com os colegas do trabalho, ou traições com alguma vagabunda. Felipe riu, e tentou tranqüilizá-la. Nunca fora mesmo de safadezas, nem intentava isso. Era um eterno apaixonado por Lúcia, e se pensava em trabalhar mais, era ela que o impulsionava a isso. Não adiantou. Mais meia hora em que discutiram, resultou numa porta sendo batida com força, uns bons palavrões e o semblante desolado de Felipe, que teria que se instalar no sofá para passar a noite.

Pela manhã, mal se falaram. As costas dele doíam. A cara dela estava inchada. Ele ainda tentou entender o que estava acontecendo. Porque ela não podia simplesmente se alegrar com sua promoção? Qual a grande dificuldade em enxergar o lado bom das coisas? Tomou seu café em silêncio. Pegou sua pasta e ainda tentou beijá-la. Lúcia resmungou, e se esquivou. Felipe saiu, com suas costas arqueadas, não apenas por causa do sofá, mas pelo desânimo.

E os dias seguiram assim. Ele, cada vez mais triste pela indiferença dela. E ela, cada vez mais obcecada em descobrir alguma coisa. Era só Felipe sair de casa, que começava o ritual. Vasculhava gavetas, remexia em bolsos, cheirava camisas. Sempre em busca de alguma pista ou evidência. E nem a noite, quando ele chegava, isso tinha fim. O banho era hora de fuçar seu celular, e abrir sua carteira, em busca de bilhetes ou mensagens que provassem uma traição. Sabia que nos livros era assim. Deveria ser também na vida real.

A grande ironia é que no fundo, Lúcia sabia que Felipe era mesmo incapaz de lhe trair. Mas seu desejo em viver uma história dramática era tão intenso, que não se dava conta, ou não se importava com a amargura de seu marido. Nunca parou pra perceber a reforma que ele havia feito na casa. Jamais agradeceu o sem número de flores e chocolates que ele lhe trazia quase todos os dias. Os prospectos de agências de turismo, com a intenção de uma viagem a dois. Já não o beijava. Nem sequer o abraçava. E nunca encontrava qualquer sinal de sua traição. E de certa forma, ao invés de tranqüilizar-se, ela se enraivecia. Sentia vontade até de chamá-lo de frouxo, covarde. De fazer algo que o estimulasse a traí-la de verdade.

E assim o fez certa noite. Esperou que chegasse do trabalho, e, sem mesmo deixar que colocasse sua pasta no chão, já o foi bombardeando com insultos e injúrias que o deixaram zonzo. O humilhou de tal forma que nem a maior das megeras jamais o teria feito. Ao passo que o sangue dela fervia, o dele descia até os pés, deixando-o branco, lívido, gelado. E enquanto os impropérios de Lúcia continuavam, algo começava a acontecer com ele. Esperou pacientemente ela terminar, e quando finalmente Lúcia caiu exausta no sofá, ele se virou e subiu as escadas.

O barulho da porta se fechando foi precedido de um longo intervalo de silêncio. Lúcia esperava que alguma coisa acontecesse depois disso. Quem sabe ele não sairia arrumado, de banho tomado, pronto para ir a algum puteiro? Voltaria para casa fedendo a perfume enjoativo e ordinário, tropeçando de tão embriagado. Ela reclamaria, eles brigariam. Ofensas, tapas e todos os tipos de agressões poderiam acontecer. Quem sabe Felipe não tivesse até uma arma e a ameaçasse? Esses pensamentos a excitavam, e ela chegou a estremecer. Sorriu.

Decidiu ver o que ele estava fazendo. Em silêncio foi subindo degrau por degrau, mas parecia tudo quieto demais. Será que o encontraria enforcado? Ou talvez com os pulsos cortados, com uma expressão de dor, vendo o sangue minar de seu braço e manchar o chão. Estava mais preocupada com o contexto narrativo, do que com a integridade física de seu marido. Mas nem tinha tempo para pensar em sua própria canalhice. Era como em seus livros: o desfecho estava por vir. Seu coração disparava. A boca seca. Nunca tinha experimentado aquela sensação.

Decepcionou-se profundamente ao abrir a porta, e se deparar com um Felipe deitado, em sono profundo. O ronco vigoroso denunciava que permanecia com vida. Tamanha frustração fez Lúcia cair de joelhos. Nem o estrondo de seu corpo no chão foi capaz de acordá-lo. Muito menos o choro compulsivo de raiva, ao ver seu marido ali, com o semblante tranqüilo, como se sua placidez fosse uma zombaria. Aquilo a encheu de uma cólera gigantesca.

Levantou-se e enxugou os olhos. Saiu do quarto e desceu as escadas calmamente. Mas alguma coisa em seu olhar ainda parecia transtornado. Passou pela sala, e viu seu rosto refletido em uma janela. Desviou o olhar, como se tivesse enxergado algo assustador. Foi até a cozinha, pegou uma panela, encheu de água e a colocou para ferver. Ainda naquela noite teria sua grande história trágica.

segunda-feira, 17 de agosto de 2009

Pudim


É. Lá estava eu dentro do carro há meia hora. Tentando criar coragem pra entrar na casa da Andressa. Normalmente já era um suplício fazer isso. Claro. Confesso que simpatia e cordialidade nunca foram muito meu forte. Sou um anti-social por natureza. Tenho um pouco de “gastura” dessas coisas de ficar sorrindo, inventando assunto, fingindo interesse quando falam de futebol ou quando elogiam o chato do Marcelo Camelo e seu novo cd. Mas o grande problema é que era difícil, por “default” encarar o povo da casa dela.

O pai, que alterna momentos de alegria e euforia ao me ver, solta comentários do tipo: “aquele chato que não bebe ta aqui? Ele não tem casa, não?”. A mãe vive trocando meu nome (é, pelo dos outros namorados que a filha já teve. Gostaria de conhecer o tal Eduardo. Ele parece mesmo ser brilhante). As irmãs, Carla e Milena. Hummm. Deixarei para um capítulo a parte. Hoje meu lado rodrigueano de tara por cunhadas foi suprimido pelo clima natalino-trash-apocaliptico que já se anunciava.

Absorto em meu sofrimento, nem percebi o adocicado cheiro que tomava o ar dentro do carro. Maravilha. Alguns buracos e lombadas tinham transformado o banco do carona numa travessa para o pudim que minha mãe carinhosamente fez, para que eu não chegasse de “mãos abanando” na ceia natalina. Tudo bem. Era só colocar de volta no pirex. Ninguém perceberia que ficou meio desmontado, um pouco torto pra esquerda. Mas o problema nem era esse. “Merda”, pensei. Minha irmã tinha pego o carro pra levar o poodle da minha sobrinha pra tosar. Pêlos de cachorro em suspensão no ar. Isso explica os espirros que dei no trajeto todo. Preciso lembrar: não comer o pudim.

Bem, vamos lá. Enfrentar meus algozes e obter a purificação espiritual. Aperto a campainha. O “já vai” em voz levemente embriagada já me remete ao que terei de enfrentar até o momento em que o peru Sadia será cortado, e as bocas se calarão pra melhor mastigá-lo. O pai de Andressa nem sequer disfarça o quanto está contrariado/chateado/decepcionado e/ou outras sensações que tenham passado em sua mente ao me ver. Decerto (adoro esse termo) esperava o entregador da distribuidora de bebidas com mais uma grade de cerveja. Com um grunhido e um gesto me mandou entrar. Ainda tive a decência de dizer, entredentes, um “feliz Natal”, mas fiquei no vácuo. “Comerás meu pudim de pêlos, maldito”, pensei, numa espécie de vingança besta antecipada.

Fui até a cozinha cumprimentar as outras pessoas. Mãe, tios, tias, avós, cunhados, sobrinhos. Aff. Era muita gente. Não sobraria lugar pra mim à mesa. Andressa estava terminando de enfeitar uma travessa de arroz. Estava bonita (ela, não a travessa. Odeio arroz coloridinho). Estava com um lindo vestidinho estampado e as unhas num vermelho vivo que ela pouco usava, mesmo quando eu dizia que achava bonito. Deixei o pudim torto na mesa, lhe dei um beijo e cumprimentei sua mãe. Ela me ofereceu rabanadas. Fiz uma cara meio estranha. Eu odeio rabanada, e acho que ela percebeu. “Ah, é. Quem gostava era o Murilo”. Gentilmente recusei com um sorriso nos lábios e um desejo de “enfia o pão, os ovos, o açúcar e a canela no cu do Murilo”. Fui até a varanda, falar com o resto da família. Começa então minha descida ao inferno.

A visão é aterradora. As crianças gritando, brigando, chorando. As mães reclamando da bagunça. Os cunhados bebendo e enchendo meu saco, querendo que eu pegue um copo e beba com eles. A parte boa é que pelo menos não tinha (ainda) a Simone tocando o “então é Natal, e o que você fez?”. Mas, como diria um conhecido que “miséria pouca é bobagem”, o que seria um peido, pra que já cagado estava?

Para minha sorte (?), a mãe de Andressa disse que logo a ceia seria servida. Mas até lá, ainda me aguardava muita dor e sofrimento. E eu já sabia o que isso significaria: os presentes. Primeiro, o amigo X. Depois, a vinda de Papai Noel. Todo ano a mesma coisa. Fizemos o sorteio dos nomes, e o amigo X transcorreu sem maiores complicações. Tirei uma das crianças, dei um presente que ela não entendeu o que era e jogou num canto. Acho que era uma espécie de joguinho de montar. Ganhei um par de meias de um dos maridos da irmã de Andressa. Acho que ele ficou mais surpreso do que eu ao ver o que era o presente.

Bem, todos deram e receberam os mimos. Isso era o sinal de que a vinda de Papai Noel já era um fato. Olhei em volta, e tentei reparar quem estava faltando. Lógico, o eleito para vestir aquela surrada e embolorada roupa do bom velhinho. Esse ano, graças a protuberante barriga, conquistada pelo chopp e miúdos de frango do boteco do Pelado, o velho Noel seria magistralmente interpretado por Lalico, o marido de Carla. Acho que ia ser divertido.

Enquanto conversava e passava a mão nas coxas de Andressa, que estava confortavelmente sentada em meu colo, começo a ouvir um “ho, ho, ho” meio descadenciado, ofegante e com um tom embriagado. Lalico já começava a sua performance, para desespero das crianças. Os mais novos choravam, se escondiam e se desesperavam. As mais velhas faziam um ar de ceticismo e esgares de “eu sei que Papai Noel é apenas uma lenda criada pelo imperialismo norte-americano que tem como pretensão impulsionar o consumismo desenfreado”. Ok. Tenho que concordar. A visão era dantesca, desesperadora, caótica. Parecia aqueles papais noéis de filme de sessão da tarde. Bêbado, barba torta, cambaleante. Tragicômico. Um Papai Noel com cofrinho aparecendo, de tênis e um puta bafo de cana. Caralho. Definitivamente o Natal me entristecia.

Acabada a pantomima, papéis de embrulho pelo chão, crianças martelando pianinhos de brinquedo e soprando cornetinhas irritantes, fomos comer. “Ótimo”, imaginei. “Como um pouco, faço uma hora, dou uns amassos na Dê e vazo pra casa”. Só umas lascas de peru me separam da liberdade. Uma oração é puxada pelas avós. Tento fechar os olhos, mas é engraçado ver as expressões de desespero nas caras famintas. O “amém” vem em uníssono, como um suspiro de alívio. Barulho de talheres e louça. Um pimpolho já começa quebrando um copo e começa a chorar. Toma esporro, chora mais ainda. A mãe manda parar de chorar e a situação piora. O pai só ri. E eu sofro.

Ansioso, estendo meu prato. Peço que dona Yolanda coloque pouco, mas acho que ela me ignora totalmente. “Não. Você está muito magrinho. Precisa comer. O Rafael gostava de prato cheio”. Velha senil. Não sei se ela não gosta de mim ou se é apenas sem noção. Gostaria de perguntar se na época em que ela nasceu já era feito o teste do pezinho, mas não ia me aborrecer mais. Nota: eu sei que o Rafael gostava de comer. Dá pra reparar nos 160 kilos que ele ostenta hoje.

Termino de comer rapidamente, faço dois ou três elogios do tempero e fico ali, observando enquanto Andressa começa a servir as sobremesas. Não seguro uma risada quando Mozart, marido de Milena, diz que o pudim está uma delícia. Sei que até a hora de ir embora ainda sofreria como um cão, mas só aquela visão já me consolava. Quanta alergia, intoxicação e sabe-se lá mais o que aqueles restos de pêlo iam ocasionar. Foda-se. Cada um com seus problemas. E eu já tinha vários. Estendem um prato com o doce pra mim. Recuso. Prefiro apenas comer um bombom.

segunda-feira, 27 de julho de 2009

Pulinhos


- Que tal sermos honestos um com o outro?
- Heim?!
- Honestidade. Vamos confessar .
- Confessar o que, peste?
- Se você disser com quem me traiu e quantas vezes, eu faço o mesmo.
- Ui.

Mauro tinha recebido esses dias mais um daqueles textos que são creditados ao Jabor. Bem, pra ele qualquer porcaria escrita pelo Jeremias (“foi o cão que butô pá nóis bebê”) poderia ser do Arnaldo, visto que sempre o considerou um chato de marca maior. Mas esse lhe pareceu interessante por se tratar de uma das grandes contradições do universo: a mente feminina.

O texto dizia que as mulheres não esperam um homem perfeito. Bem, com base na interpretação das palavras de Jabor, concluiu que perfeição e fidelidade são quase sinonímias. Enfim, pra resumir, o texto dizia que as mulheres não apenas NÃO esperam um homem fiel, mas também entendem a necessidade “biológica” da traição, sobretudo masculina.

Olhou meio de soslaio pra tela do computador, e deu uma grande risada, que ecoou pela sala. “Besteira. Balela. Embuste. Engodo. Fraude”, bradou. Uma piada, na verdade. Olhou para o lado, e viu a cara intrigada de seu amigo Tuca. Pigarreou e bradou solenemente, com aquelas vozes de Zé Wilker, no “A vida como ela é”:

- Se a sua mulher disser que aceita uma traição, que é moderna, esclarecida, que entende que o homem deva mesmo dar suas escapadelas de vez em quando, desconfie.

E continuou: “olho vivo, rapaz”.

Ainda explicou a um aparvalhado Tuca sua teoria. Como diria aquele cara do seriado Carga Pesada: “é uma cilada, Bino”. Das duas uma: ou ela quer te pegar no flagra, pra poder te escrotizar, te acusar, pedir o divórcio e ficar com a casa de praia, ou quer é arranjar motivos pra te por um par de chifres. Guampas, como se diz no sul.

- Se você não tem vocação pra bambi, mas quer continuar dando seus saltitos, não caia nos ardis femininos - falou, com orgulho de seu próprio discurso.

Sempre se considerou um cara esperto. Namorava há muito tempo a Ju. Tinham até planos de se casar. Porém, na lógica de Jabor, ele tinha suas necessidades. Volta e meia cedia aos apelos da natureza e saia com outras garotas. Sempre tinha um álibi, uma desculpa na ponta da língua. Se bem que quase nunca precisava. Era um artista. Um maestro na arte de orquestrar safadezas. Mentia com a cara mais deslavada do mundo. Qualquer acusação mais firme, o fazia chegar às lagrimas.

No fundo, sentia que amava sua namorada, e que essas escapadelas não interferiam no gostar. Mas, no “day after” da putaria, sentindo uma leve ressaca moral, procurava fazer todas as vontades dela. Levava para jantar, para dançar. Arrumou um amigo suíço que contrabandeava chocolates (quem faz contrabando de chocolate?!). Gastava muito mais tempo no sexo oral, que ela adorava. Certa vez o sentimento de culpa foi tão grande que refletiu num deslocamento do maxilar. Ela gozou três vezes, ele foi direto pro ambulatório.

Só não contava que naquele domingo, logo pela manhã, Juliana ligasse e fizesse a intimação. Ainda meio grogue e com os olhos remelentos, ficou com a ordem ecoando por sua cabeça, como uma labirintite:

- Venha aqui agora, que eu preciso falar com você.

Enquanto tomava seu banho, começou a cogitar hipóteses. Provavelmente alguém o teria visto na esbórnia e contado a ela alguma coisa. Sorriu por se dar conta de que possuía um estoque quase inesgotável de desculpas. Certamente ela cairia mais uma vez. Terminou, desligou o chuveiro e foi se vestir. Pegou as chaves do carro e o celular. Teve a precaução de apagar todas as mensagens. Não podia correr riscos. Teve orgulho de sua engenhosidade.

Ela já estava na varanda quando ele chegou. Seus pais haviam ido à missa, e por isso estavam sozinhos. Poderiam conversar a vontade por algumas horas. Mas ela já foi recusando seu beijo, e indo direto ao assunto:

- Sei que você me trai, Mauro.
- O que? Tá maluca? fingiu espanto, e sentiu-se até ofendido.
- Olha só. Não adianta negar, eu sei. Mas também não quero brigar.
- Ju, você ta doida. Não sei porque ta falando isso.

Manteve a calma. Buscou seu repertório de pretextos. Se preciso fosse, alegaria insanidade temporária, amnésia alcoólica. Diria que prestou um serviço de caridade pra pobre mocinha que nunca havia beijado alguém e que morreria em poucos dias. Juraria pela mãe mortinha, e até por Farrinha, a cadela que realmente já tinha morrido. Sairia dessa, e ainda seria o grande injustiçado. Já pensava até no furico de Juliana, que seria sua compensação por tamanha desconfiança, quando foi interrompido:

- Só quero que você confesse. Só isso. – ela disse, com uma calma assustadora.
- Não tenho que o que confessar. – reagiu.
- Mauro, se você disser com quem saiu, eu também digo.

Tóim! Por essa ele não esperava. Como assim, ela confessar? “Será que essa vagabunda me chifrou?”. Ficou vermelho. Engasgou. Não conseguia pensar em mais nada. Ficou se imaginando como o motivo de piada dos amigos dela. Era corno, e ele não sabia como reagir.

- O que você tem pra me contar? – ele gritou.
- Fica calmo. Já disse que só conto se você me falar. Com quem, e quantas vezes.

Ficou acuado. Sentiu que ia se foder, mas não poderia ficar sem saber a verdade. Mataria Juliana e esganaria o safado. Ou faria o contrário, mas corno ele não ia ser.

- Ok. Vamos lá.Eu falo.
- Tá bom. Depois sou eu. – ela disse, tranquilamente.

Por mais de uma hora ela ouviu uma ladainha de nomes femininos. Alguns que ela já desconfiava, outros que ela nunca imaginou. Até primas e amigas tinham passado por ali. Apesar do espanto e dos esgares de nojo, mantinha uma passividade espantosa. Suas maiores reações eram de vez em quando um suspiro ou um levantar de sobrancelhas. Não disse uma só palavra, até ele ter terminado. Quando ele indicou que já não tinha mais ninguém, ela se pronunciou:

- Tá bom. Agora vai embora, e nunca mais apareça aqui.
- Opa. Peraí. Agora é a sua vez de falar. Com quem você me traiu? – disse, com os olhos vermelhos de raiva.

Foi curta e grossa:

- Nunca o traí, seu babaca
- ...

Entrou e bateu a porta. Ele ainda permaneceu ali tonto. Sentou na escada e sentiu o sangue escapar da cabeça. Sentiu-se branco, lívido, gelado. Teve medo de desmaiar, e foi cambaleando para o carro. Não sabia o que fazer, só queria ir embora, se esconder, escafeder. Deu partida e arrancou sem afivelar o cinto. Pegou o celular e ligou para ela. Não tinha certeza se queria xingá-la, ou pedir perdão. Nem teve muito tempo de decidir. Logo estava embaixo de um ônibus.

Dois meses depois, ainda estava no hospital quando recebeu o envelope. Com os dois braços engessados e o colete ortopédico, não conseguia sequer abrir o envelope. Riu da situação, e apesar das fraturas que o deixariam mais um tempo na cama, sentia-se um sortudo por não ter morrido. Deu uma olhada, e curioso pediu que a enfermeira lesse em voz alta o convite de casamento de Juliana.

sábado, 28 de fevereiro de 2009

Calor


“Preciso falar com você. Mas tem que ser pessoalmente”, disparou. Uma voz meio chorosa, meio afoita. Ele não entendeu chongas, mas ficou preocupado. Há uns quatro meses que não se falavam.

- To saindo pra almoçar, pode ser agora?
- Uhum. Quer que eu te pegue aí?
- Não. Me encontra naquele restaurante. Onde fomos na primeira vez.

A primeira vez. Engraçado pensar nisso. A primeira vem em que se viram não foi recheada de romantismos e frases de amor. Nada de ternura e floreios. Foi uma febre intensa, um desejo ardente e filho da puta, que só deu trégua depois da terceira vez que foderam naquela tarde. Ela, exausta, suada, ofegante, só teve forças pra conferir as doze ligações em seu celular. Todas do seu marido.

Ele já sabia que ela era casada, desde o começo. Conheceram-se acidentalmente pela internet, quando em um site de busca, ela achou o e-mail dele por engano. Muitas mensagens trocadas depois, resolveram se encontrar pra almoçar. Chegaram rápido. Apesar de não ser um encontro tão às cegas, a surpresa ficou claramente exposta naquele breve instante em que o descompasso do coração e o arrepio na espinha se converteram em dois grandes sorrisos de felicidade. Os olhos de uma cor diferente dela. A carinha de garoto pidão dele. Todos os detalhes esmiuçados foram os assuntos que renderam naquela refeição.

Maldito sistema capitalista, que impede que os almoços se prolonguem por mais horas. Despediram-se e cada um foi para seu lado. Poucas horas depois, um telefonema já antecipava o segundo encontro daquele dia. Beijos tórridos e amassos dentro do carro dele não iam conter todo aquele desejo. Mais alguns minutos, e as roupas pelo chão eram refletidas nos inúmeros espelhos daquele quarto.

Descobriram-se apaixonados, mas pouco se encontravam. Era uma espécie de “amor” diferente. Ficavam dias, semanas, meses sem se falar. Quando dava vontade, algum deles ligava, marcavam e se viam. Encontros furtivos. Sexuais. Violentos. Trepavam, trocavam juras de amor inconsistentes, trepavam de novo, e ela ia correndo se vestir pra chegar em casa antes do marido. Nos últimos tempos, os encontros foram se tornando mais raros. A vida agitada dele não permitia parar pra sentir tanta falta assim de alguém. Era uma situação cômoda que o agradava. Talvez no fundo até pudesse amar aquela mulher, mas não tinha, e nem pretendia ter a menor responsabilidade para com ela.

Estacionou o carro em frente ao restaurante. Entrou. Sentiu-se aliviado pelo ar refrigerado forte que aplacava o calor daquele dia. Estava vazio. “Excelente”, pensou. Comeriam rápido, e poderiam conversar mais tranquilamente, cogitou, de forma prática. Ela estava sentada em uma mesa do canto. Já havia chegado há vinte minutos, o suficiente pra começar a sentir um pouco de frio ali dentro. Estava bonita. Mais bronzeada que da última vez que se viram. O cabelo liso e brilhante descendo pelos ombros, emoldurando o rosto alongado. Os olhos. Daquela cor que ele nunca conseguiu definir muito bem, mas que sempre o encantaram. Ela ensaiou levantar pra abraçá-lo. Ele se antecipou e a impediu, beijando demoradamente seu rosto e tocando em seu braço.

O garçom trouxe o cardápio pra ele. Ela já sabia o que queria, e ele resolveu pedir o mesmo. O rapaz anotou os pedidos e saiu, ao mesmo tempo que ela falou:

- To com um problemão. E preciso de sua ajuda.
- Claro. O que eu puder fazer. Estou às ordens.
- Acho que estou apaixonada. E por um homem casado.

A franqueza com que ela disse isso foi assustadora. Ele ficou alguns segundos em silêncio, fazendo esgares de quem não sabia realmente o que dizer. Teve uma sensação como se todo o sangue fugisse de seu corpo. De repente o calor já não o incomodava. Sentiu frio. Boca seca. Se tivesse que descrever a sensação, provavelmente não saberia.

Ela esperava uma resposta. Uma reação. Qualquer manifestação dele que indicasse que ela não era doida, ou que pelo menos não fosse uma puta pervertida. E talvez, bem lá no fundo, essas duas hipóteses tivessem passado pela cabeça dele.

- Não sei o que te dizer. Soltou, simplesmente.
- Como não? Não era essa a resposta que eu esperava.
- E queria que eu dissesse o que?
- Não sei. Você é meu amigo. Tem que me dar algum conselho.

Sentiu vontade de rir. De amante lascivo fora rebaixado a amigo confidente. O “Zé”, daquela música deprê do Léo Jaime. Demais pra uma tarde de calor, e pra um prato de penne com salmão de tamanho ridículo, que ele nem lembrava ter pedido. Respirou pausadamente. Buscou no mais profundo recôndito de sua alma uma centelha de nobreza e fidalguia, que fizesse tombar sua dignidade, permitindo dar um conselho que acalentasse a alma perturbada daquela sua pobre amiga. “Puta merda. Amiga é o caralho”. Pensou, já de pé, e terminando a segunda garfada no prato.

- Quer saber de uma coisa? Vai se foder.
- Heim? O que você disse?
- Vai se foder. Você, seu marido, o cara, a mulher chifruda dele e todo mundo.

Tirou umas notas amassadas do bolso e jogou na mesa. Saiu pisando duro. Um garçom deu “boa tarde”, tendo como resposta um grunhido. Colocou os óculos de sol, olhou pra cima. Suspirou. Entrou no carro, deu partida e pensou: “porra. Hoje ta quente pra cacete”.

sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

Kenny G




- Meu amor. Isso é realmente necessário?
- Ai. Deixa de ser bobo. É só pra dar um clima. Pra ficar mais gostoso.
- Ta, eu sei. Mas, essas velas. Sei lá. Não é meio perigoso? Pode pegar fogo.
- Você não ta com medo né, meu bem?
- Os acidentes acontecem exatamente assim. Sou novo demais pra morrer tostado.
- Olha, só. Não estrague a nossa noite romântica. Deixa de paranóia e vai colocar uma música pra gente ouvir.
- Ok.
- Tem um CD que eu já deixei ai em cima do som. Coloca ele.
- Não é esse aqui do Kenny G não, né?
- Esse mesmo, por quê?
- Hahahahah. Não fode. Você não vai me obrigar a ouvir isso. É muito chato.
- Heim?
- Esse "fuó...fuó" que ele faz no saxofone. É ruim que só a merda. Já viu "o acasalamento do suricate" no Discovery Channel? Igual.
- Larga de ser grosso. As músicas dele são lindas.
- Ah, para. Nem morto eu coloco isso. Essas velas fedorentas, mais essa música de corno. Tá arriscado eu nunca mais conseguir ter uma ereção depois disso. Kenny G brocha qualquer cidadão.
- Nossa. Como você é estúpido. Quer saber? Esquece. Vou pra casa. É muita grosseria pro meu gosto.
- Ah, não. Não vou deixar você ir embora assim. Vamos comer primeiro, depois você pode ir.

segunda-feira, 23 de fevereiro de 2009

Somos nozes


- Caramba, eu não falei. Você conseguiu de novo. Putz. Você é "o cara".
- Que nada, para com isso.
- Porra. É sério. Quando eu crescer quero ser que nem você.
- Ah, que exagero. Nem sou "o cara".
- Nada. Você é sim.
- Não, não. Sou apenas um esquilinho, tentando conseguir uma noz.
- ...
- Que foi? Que cara é essa?
- Como é? Esquilinho? Noz?
- É. Não sou "o cara". Sou um esquilinho tentando conseguir uma noz. Nunca ouviu essa expressão?
- Expressão? Isso não é expressão. Isso é viadagem.
- Heim?
- Caralho. Isso é boiolice da grossa. Porra. Esquilinho? Que merda é essa?
- Ah, vai se foder. Não tenho culpa que você nunca ouviu.
- Hahahahah. Esquilinho...esquilinho. Ui...ui. Pega aqui nas minhas nozes. Hehehehe.
- Filho da puta...
- Esquilinhoooooooo...

quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

Hoje acordei com o rádio tocando INXS



Acho que nunca me conformei com a morte do Michael Hutchence. Claro. Não que eu tenha sido seu maior fã, ou algo que o valha. Mas é que toda vez que ouço “By my side”, sinto um aperto no peito, e aquele nó na garganta. Começo dos anos 90. Ótima época. Ainda estava no segundo grau, ainda tinha cabelo. Poucas preocupações, a não ser estudar um pouco, dormir à tarde e pensar que grupo muscular eu exercitaria na academia mais à noite.

Lembro-me também das minhas primeiras frustrações e decepções. Da minha primeira dor-de-cotovelo e, consequentemente, do primeiro porre com vinho barato. Até hoje fico pensando como apesar de tudo tive dignidade ao acertar a pontaria na privada, enquanto “ouvia” minha mãe brigando. Grandes amizades, novas idéias. As decisões do que fazer, de como conduzir o resto da minha vida estavam pra chegar, mas ainda podiam esperar um pouco.

Anos e músicas se passaram. E engraçado pensar numa trilha sonora que acompanha sua vida. Talvez nem todos os momentos mereçam ser eternizados numa canção, mas outras deveriam ganhar regravações, versões instrumentais com a Filarmônica de Berlim, a capella, com o coro dos meninos castrati de Viena e remixes do Timbaland.

O primeiro dia na faculdade. O choque da primeira agência. O primeiro salário gasto com alguma coisa inútil, mas divertida. Bem, no meu caso, meio tóxica e inflamável. A perda de pessoas queridas, ao mesmo tempo que outras chegavam. As descobertas boas e as ruins.

Mesmo aquela música do David Bowie que lembra um grande amor que foi embora. Ou The Corrs, que apesar de babinha e tema de novela, embalou ótimos momentos que nem a distância conseguiria impedir. Aquela viagem fantástica, mas demorada, cuja única música que prestava no CD era "Downtown", do Peaches. A explicação incompreensível de "Wonderful Tonight", que é brega de doer, mas consegue me fazer fechar os olhos e até suspirar quando ouço. Todas provocam a mesma sensação estranha: uma nostalgia que me deixa dúvidas, se gosto ou não de sentir.

Se pudesse incluir aleatoriamente algumas músicas, colocaria até umas de gosto bem duvidoso. Talvez Bee Gees. Furingo até a última geração dos Gibbs. Acho Dalto fantástico. Fatalmente teria alguma dele. Se bem que não sei onde se encaixaria.

- Ai, Henry. Ai. Vai. Continua assim.
- Humm. Delícia. Isso. Geme, geme.
- Aiiiiiiiii. Bate, Henry. Bate na minha bunda.
- Vou só aumentar o rádio, pra vizinhança não ouvir.
“Uhhhh. Cuida bem de mimmmmm. Então misture tudo. Dentro de nós”.
- Calma, Henry. Isso acontece. Vamos tentar de novo depois.

Acho que toda vida deveria ter uma trilha sonora. Pra ser memorável. Pra ser inesquecível. Quem não lembra da overdose de Uma Thurman, ao som do Urge Overkill? Stallone treinando nos acordes de Survivor. Diane Lane dublando “Nowhere fast”, enquanto o Tom Cody de Michael Paré vai embora da cidade. A “Marcha Imperial” do Darh Vader. Até aquela merda de “Unchained Melody”, que embalou o amor elameado do Patrick Swayze a da Demi Moore, é lembrado. Por que então, nós, pessoas comuns, não podemos ter um disquinho só nosso? Com uma capinha feita utilizando aquelas fotos de estúdio.

É. Acho que tenho algum CD do INXS aqui. “New sensation” é uma boa. Depois eu ouço “By my side”.

Ilustração do Luke Chueh, http://www.lukechueh.com/

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

Manilha


“Droga”, pensei. Um calor da porra, e eu de terno preto e gravata. Só mesmo aquele asno do Manilha pra me fazer vestir isso, em pleno sol louro do verão, e ao meio-dia. Maldita exigência.

Estávamos no intervalo da pelada de quinta à noite, quando ele fez o pedido:

- Henry, você é meu brother, né? Perguntou, com um sorriso.
- Ih. Lá vem. Quando começa com essa viadagem é porque lá vem coisa.
- É sério, porra. Preciso te pedir uma coisa.
- Não falei? Você é muito previsível. Nem disfarça. Mas vai lá. Pode pedir. Não é grana, né?
- No meu enterro, faz a galera ir de terno.

Disparou assim. Comecei a rir, meio que não entendendo a palhaçada. “Não fode”, falei no meio de uma gargalhada. Mas ele tinha um estranho aspecto de seriedade no tom, apesar da cara vermelha e suada pelo futebol. Como levar a sério? Era um pândego. Um fanfarrão. Seu maior defeito acabava sendo uma qualidade pra gente: mulherengo. Toda semana, uma diferente. Às vezes, mais de uma. Outras, mais de duas ou três. Não era tão bonito, mas tinha um certo charme debochado e despretensioso que chamava a atenção das mulheres. Desconsidere qualquer questão ética e moral que envolva a monogamia. Não o julgávamos.

Vivia se metendo em confusão com maridos chifrudos, mulheres psicóticas e casadoiras-maníaco-compulsivas. Chegava sempre no jogo com uma história nova. A ninfeta que gostava de apanhar. A coroa que só transava vestida. As gêmeas. A personal trainer. Tinha exatamente esse apelido por conta de uma dessas confusões. Certa vez, passou a noite inteira dentro de um buraco na rua, aberto pela prefeitura. Fugia do noivo policial de uma de suas garotas. Só de cueca e meia, ficou a madrugada chuvosa e fria dentro de uma manilha de esgoto.

Não deu uma semana e eu desligava o telefone, com as mãos na cabeça e um nó na garganta. Era o Lucas, falando que o Manilha tinha acabado de dar entrada no hospital. “Caralho, bicho. Que merda é essa?”, pensei. Exatamente uma semana depois da pelada, e do pedido dele. Teimava em imaginar o pior. Troquei de roupa e fui correndo pra lá. Éramos todos da mesma época. Crescemos juntos, todos bons amigos. Cada um do grupo que se casava, escolhia na sorte quem seriam os padrinhos, pra desespero da noiva, que sempre tinha que se preocupar com a despedida organizada por nós. Muita farra, noites mal dormidas, regadas a cerveja, tira-gosto e um papo que era basicamente o mesmo assunto, mas que rendia pela madrugada.

Estacionei o carro e vi o Marcello lá fora, fumando. Foi o primeiro a chegar, tinha os olhos inchados e tremia muito. Achava que ele só fumava quando bebia. Péssimo hábito. Fui em direção a ele, já com uma pressão sobre a cabeça e uma sensação ruim. “Coração, Henry. Novo daquele jeito”, ele disse, já me abraçando. Marcello terminou o cigarro, abanou a fumaça e pegou um chiclete. Estendeu a mão trêmula e me ofereceu.“É, quero. Valeu”.

Fui até a porta de entrada do hospital. O cheiro de éter entrou pelas minhas narinas como uma lança. Senti vertigem. Sempre odiei hospitais. Visitar amigos ou parentes doentes era um suplício. E agora estava ali, na frente dos familiares de Manilha, com aquela maldita sensação de “tá, e agora? O que eu falo?”.

Além do Marcello estavam lá o Guto, o Orlando, o Quinho e o Marco Antônio. Mas os celulares não paravam de tocar. Todos atrás de alguma informação. Dona Rosa, a mãe do Manilha, estava sentada num canto, amparada pelas outras filhas. Tinha uma expressão de quem já tinha chorado o máximo de tristeza e secado, de tanto pesar. Fui até ela. As meninas sorriram pra mim e me abraçaram. Desde o Natal não nos falávamos. Dona Rosa levantou os olhos, passou a mão pelo meu rosto e disse baixinho: vai lá dentro acordar seu irmãozinho, pra gente ir embora pra casa”. Botei o rosto entre suas mãos, e solucei como uma criança. Foi ao lado dela que recebi a notícia do médico.

Ouvi a buzina do carro enquanto terminava de dar a última olhada no espelho. Apertei um pouco mais a gravata e não pude deixar de pensar: “seu puto, você conseguiu convencer a gente a usar essa merda”. Peguei meus óculos escuros, tranquei a porta de casa e vi que Marcello estava fora do carro me esperando. Me deu um abraço, riu e perguntou:

- É impressão minha ou isso tá com cara de filme de comédia inglesa?
- Aham. Falta a Andie MacDowell de chapéu. E uma música do Elton John.
- Tem aqui no CD. “Empty garden”. Quer ouvir?
- Marcello. Você ta muito viadinho pro meu gosto.

O cemitério estava cheio. Achávamos que seria rápido, mas o espanto viria a seguir. O número de mulheres era surpreendente. Todas bem arrumadas tentando conter o choro. Chegavam uma a uma, altas, baixas, louras, morenas, ruivas. Era engraçado, porque conseguíamos reconhecer cada uma delas, graças às descrições que o Manilha nos dava. “A passista de Boa Vista, Henry”, sussurrou Marcello, apontando pra mulata gigante, e lembrando de uma das histórias mais memoráveis do safado.

Todas de preto. Algumas até com véu. Aquilo soava como mais um dos pedidos extravagantes daquele maluco. Solidárias na mesma dor, se cumprimentavam. Ele gostou de cada uma delas, e pelo visto, o sentimento era mútuo. Ali não parecia existir frustração, mágoa, rancor. A maioria contida, com exceção de uma mocinha de óculos, o rosto vermelho de tanto chorar. Ela chegou bem próxima à cova, e todos voltaram a atenção para a cena. Enxugou as lágrimas com um lenço de seda e num gesto brusco, arrancou do dedo direito uma aliança que foi arremessada com toda fúria em cima do caixão. O barulho seco provocou um “ohh” coletivo. Dona Rosa virou o rosto em minha direção, e numa expressão solícita esperava alguma espécie de explicação. Fiz minha melhor cara de origami. Também não sabia o que dizer, o puto estava noivo e não disse nada? Vai ver por isso que teve um pirepaque. Fui obrigado a disfarçar um sorriso. “Filho da mãe”, pensei.