domingo, 22 de novembro de 2009

Cinema


Regina era sim uma mulher única. Desde cedo aprendera a cozinhar, e o fazia magistralmente. Da mais simples farofa de ovos, até arriscava um prato mais elaborado sem passar vergonha. Também costurava, bordava, pintava em porcelana e outros afazeres de cunho doméstico. Cuidava da casa e dos filhos com uma dedicação quase religiosa. E era devotada a seu marido. Aliás, talvez respeitasse mais o compromisso do casamento do que aquele homem.

Se não era a mais bonita das mulheres, tampouco era a mais horrenda. Tinha uma beleza comum, discreta, apagada até. Era daquelas que não tinham muitos atrativos que a fizessem se destacar. Peitos pequenos, pouca bunda, pernas finas. Da adolescência sobraram algumas marcas provocadas pela acne. Mas apesar dessa pouca graça, possuía dois grandes olhos verdes, que faiscavam quando estava feliz. O que raramente acontecia. Há muito tinha largando seus sonhos para ser a dona de casa ideal. Ele provinha o sustento, ela cuidava do resto. Nem se lembrava a ultima vez que ele a tocara com desejo. E se pensasse bem, talvez ele nunca o tenha feito. Eventualmente uma trepada burocrática era o máximo de carinho que ele dedicava a ela. Sempre fazendo questão de desmerecê-la.

Era um escroque. Um crápula. Tratava mulher e filhos como se fossem lixo.  Sempre aos berros e safanões. Não era capaz do mais ínfimo gesto de ternura e respeito. Chegava quase todas as noites bêbado, fedendo a perfume doce e gritando. E madrugada afora, lá ia Regina esquentar alguma coisa para aquele animal comer. Mal terminava de raspar o prato, reclamava da comida, proferia algumas ofensas a sua esposa e se dirigia para o quarto. Cinco minutos depois já estava roncando, sem nem mesmo ter tirado a roupa.

Tanta resignação dela era vista com espanto pelo resto da família, pela vizinhança, pelos filhos. Ninguém compreendia como aquela mulher, sendo tão virtuosa, conseguia suportar tanta humilhação. Não tinha uma alegria, um momento de paz naquela casa. A única coisa que a afastava daqueles momentos de amargura, eram suas idas ao cinema, toda a semana. Aproveitava que Célio estava no trabalho e os filhos na escola e ia, tranquilamente assistir as sessões da tarde. Fazia isso duas, ou três vezes na semana. Voltava plácida, serena, descansada. Era  como se todo o peso do mundo ficasse na sala de projeção. Se era possível ser feliz por apenas alguns instantes, ela assim conseguia.

Certa noite ao chegar em casa, mais uma vez completamente embriagado, já foi aterrorizando. Acordou mulher, filhos, e provavelmente todo o bairro. Gritava como um louco. Exigiu comida. E lá foi Regina, com os olhos ainda meio grudados de sono para a cozinha. No meio do trajeto foi surpreendida por Célio, que como um possesso a agarrou. Estava transtornado. Tentava a todo custo beijá-la. Enquanto ela tentava se desvencilhar, teve sua roupa rasgada. Mesmo nua, e sendo lambida, mordida e apalpada por aquela figura repugnante, mantinha uma aparência de frieza e calma, que só era quebrada por duas ou três lagrimas que rolavam do seus olhos. Quase meia hora depois, ele estava saciado. Enquanto se levantava e ia para o banheiro, ela permanecia ali deitada no chão da sala. Coberta daquela saliva nojenta, remontou mentalmente toda a tortura, e quando se levantou, percebeu um arroio pegajoso de esperma que escorria pelas suas pernas. Sentiu tanto asco que se pudesse, teria arrancado a própria pele. Procurou se recompor, limpou-se um pouco com os farrapos de sua calcinha, e foi para a cozinha, esquentar o macarrão para Célio. Naquela noite, ela não dormiu.

No outro dia, ele acordou como se nada tivesse acontecido. A tratou com a mesma indiferença  de sempre. Ela de costas e com as mãos apoiadas na pia, nem sequer se virou pra olhar enquanto ele saia para o trabalho. Permaneceu ali por alguns minutos e finalmente desabou em lágrimas. Já pela tarde, as crianças chegaram da escola. Deu comida a eles, e quando estava saindo para seu habitual cinema, recebeu a ligação: Célio havia sofrido um acidente. Transtornada, pegou o endereço do hospital e saiu desarvorada atrás de um táxi. Não sabia o que lhe dava mais remorso, se era a preocupação tamanha por alguém que nenhum valor lhe dava, ou se a culpa por esse pensamento hesitante. Ao chegar, ele já estava sendo operado. Um ônibus o arrastara alguns metros. Sobreviveria, mas depois dos pinos e implantes, no mínimo uns seis meses ate voltar a andar.

E varias cirurgias depois, foram pra casa. Ele, de talas e gesso, com braços e pernas imobilizadas precisava de ajuda até para beber água. Regina, como sempre, solicita. Mas de nada adiantava. Pra proporcionar mais conforto a ele, arrumou um colchão do lado da cama, e ali se instalava toda noite, acordando a qualquer hora, pra trazer água ou dar os remédios. A dor e a impotência da situação só serviram pra deixá-lo ainda mais agressivo. Gritava, praguejava e a ofendia com insultos cada vez piores. Dizia sentir saudades das putas, e que assim que pudesse se levantar, ligaria pra alguma delas, e a mandaria ir ate sua casa, e ainda trepariam ali naquela cama. E gargalhava impiedosamente.

Ao ouvir isso, algo aconteceu. No escuro do quarto era difícil enxergar a mudança daquela expressão sofrida e cansada, para uma feição mais dura. Alguma chave em Regina tinha sido ligada. Um raio a atingiu dos pés até a cabeça. Mesmo tardiamente, a ficha tinha caído. Seus olhos ardiam de raiva. Foi possuída por uma sensação inédita. Ergueu-se do colchão, e com voz ameaçadora disse: “boa idéia”. E antes que ele pudesse retrucar, saiu batendo a porta, o deixando com um ar abestalhado. Mais uma noite, ela passou em claro. E ali, esperando o sol nascer, começava a dar as boas vindas a uma nova pessoa dentro dela.

Ao amanhecer, Célio gritava de dor e fome. E apenas algumas horas depois Regina apareceu no quarto, cheia de sacolas. Tão compenetrada estava, que ignorou totalmente as reclamações dele. Foi abrindo pacotes e embrulhos. Tinha saído bem cedo e comprado roupas, maquiagem, perfume. Abriu uma caixinha com dois lindos brincos e sorriu. Sob uma enxurrada de palavrões, foi para o banheiro, de onde saiu duas horas depois. Parecia outra pessoa. Cheirosa, com os cabelos molhados. Tinha um frescor na pele que há anos não se percebia. A essas alturas Célio estava totalmente sem forças até para reclamar, e sentiu um nó na garganta quando a viu deixar a toalha cair, e pegar seu vestido novo. Arrumou-se, vestiu uma calcinha de tamanho mínimo, colocou os brincos, sandálias altas e borrifou um pouco do perfume. Nem sequer olhou para trás. Bateu a porta, e deixou ali um desfalecido e fraco Célio. Ao sair de casa, trancou o portão, e continuou. Estava aliviada por sair dali. Começou então a repassar mentalmente seu plano. As crianças ficariam na casa dos avós até o final da semana. Estava pronta.

Pegou um táxi, e se dirigiu ao cinema. Mas naquela tarde, não foi atrás de nenhum grande filme em cartaz. E achou logo o que procurava. Na terceira fileira estava ele. Alto, forte, com ombros largos. Tinha uma aparência meio bruta, com aquela barba e o cabelo desgrenhado. De camiseta regata e chinelo, parecia mais um caminhoneiro. Ria alto das besteiras que apareciam no telão. Regina então decidiu que seria ele, e não se fez de rogada. Caminhou decidida ate aquelas cadeiras, e pedindo licença sentou-se ao seu lado. Alguns sorrisos e gracejos depois já estavam se beijando freneticamente. Ele sussurrava besteiras em seu ouvido. De repente, o convite:

- Vamos terminar isso lá em casa.

Ele, apesar de surpreso, topou na hora. Pouco se falaram no trajeto. Ele a alisava por baixo do vestido. E ela tremia, suava frio. Chegaram, pagaram o táxi e ela abriu o portão. Quando entraram, já estava se despindo e se beijando. Ela, com dificuldade pediu pra que esperasse, pois precisava mostrar uma coisa. Mal falou isso ouviu Célio gritando de dor e desespero. O rapaz, se assustou, e antes que fosse embora, Regina o segurou fortemente pela mão e lançou um olhar que o petrificou:

- Você não vai embora daqui até me dar tudo o que eu quero.

Falou isso determinada, enquanto abria os botões de seu vestido. Ele, ainda hesitante, concordou com a cabeça. Entraram no quarto. Célio arregalou os olhos ao ver sua esposa com aquele estranho. Antes que ele pudesse dizer uma só palavra, Regina o silenciou com um gesto. A única pessoa que não estava confusa e chocada ali era ela. Enquanto fechava a porta, olhou para o rapaz, e disse que explicaria tudo com mais calma, mas só depois.

4 comentários:

  1. A crueldade de uma mulher, geralmente, é mais implacável que o ato gerador da vingança, praticado por um homem.

    A desforra é ruminada, tempos antes. O regurgito é de fel puro. Amargo e ácido como a indiferença, a desconsideração e o desamor.

    E depois, faz -se até força para chorar, pra amenizar a total falta de compaixão ou arrependimento, mas nem nossa própria consciência consegue ser virtuosa ou menos impiedosa, depois de tanta humilhação.

    Nem todas, é claro! Algumas são bem piores que isso, rs.

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  2. Noooosa... eu amo essas hitorias de reviravolta.. e essas mulheres de antigamente, devem acordar.. existe outro ,mundo além de filhos e marido!!!
    Parabéns... mas escreva com + frequencia...! bjos

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  3. É ISSO AÍ, REGINA, MULHER!
    O marido merecia isso e muito mais
    bwowwwwowowoowh

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  4. Boooom!!
    AS Reginas da vida precisam tomar mais atitude!!!!!! Mulher é isso! ;)

    Poste mais vezes!

    =*

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